A avaliação do LCR no comprometimento do SNC na leptospirose

A leptospirose é uma zoonose causada por espiroquetas patogênicas do gênero Leptospira. Ocorre em regiões temperadas e tropicais, sendo que a incidência nos trópicos é aproximadamente 10 vezes maior do que nas regiões temperadas. Estima-se haver mais de 800 mil casos anualmente em todo o mundo com mais de 48 mil mortes.

A infecção humana geralmente resulta da exposição a fontes ambientais, como urina animal, solo ou água contaminada. As portas de entrada incluem cortes ou abrasão na pele, membranas mucosas ou conjuntivas. Há controvérsia sobre a capacidade da Leptospira penetrar na pele intacta. Nos trópicos, a leptospirose endêmica é associada à baixa escolaridade, moradia precária, falta de saneamento e baixa renda), sendo adquirida viaexposição ocupacional (agricultura de subsistência) e em favelas urbanas infestadas de roedores e sujeitas a inundações.

Grandes surtos são frequentemente associados ao aumento da precipitação ou inundações, aumentando o risco de exposição a água contaminada. A infecção transplacentária é possível, mas a taxa de transmissão fetal e o tipo e frequência das complicações fetais são ainda desconhecidos. 

O gênero Leptospira contém 22 espécies, sendo apenas 10 considerados patogênicos. Os métodos moleculares são os mais modernos para classificação de cepas de Leptospira. Ao contrário de outras espiroquetas, como o treponema causador da sífilis, a Leptospira patogênica pode ser cultivada in vitro a partir de amostras clínicas, incluindo sangue, urina e líquor (LCR). São necessários meios especiais para o isolamento, como os meios de Fletcher, Ellinghausen-McCullough-Johnson-Harris ou polissorbato 80.

Portanto, é necessário que o laboratório seja notificado da suspeita, uma vez que não são meios de cultura convencionais.  O crescimento é lento, podendo levar de uma semana até três meses. 

Clinicamente, a doença se manifesta de forma leve, autolimitada ou subclínica, na maioria dos casos. Contudo, alguns são graves e potencialmente fatais. Os sintomas iniciais são: febre, calafrios, mialgias e cefaleia, após um período de incubação de 2 a 26 dias (média de 10 dias).

A sufusão conjuntival é um sintoma comum, sendo esse um achado incomum em outras doenças infecciosas. Hemorragias subconjuntivais também ocorrem. Manifestações sistêmicas como tosse não produtiva, náuseas, vômitos, diarreia, mialgia, esplenomegalia, linfadenopatia, faringite e hepatomegalia são também muito comuns. Artralgias e dores abdominais são menos comuns.

Os sintomas da leptospirose são bifásicos, na primeira fase, bacterêmica, com duração de dois a nove dias. A segunda fase consiste em uma fase “imunológica” caracterizada por reinício da febre e desenvolvimento de complicações.

Durante a fase imunológica não há leptospiras estão ausentes no sangue, mas podem aparecer na urina. As duas fases podem se sobrepor clinicamente. Nesta fase imunológica pode haver graves complicações, como icterícia, insuficiência hepática, insuficiência renal (“doença de Weil”), hemorragia pulmonar, síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA), uveíte, miocardite e rabdomiólise.

As complicações neurológicas incluem: 

  • Meningite asséptica – observada em 50 a 85 por cento dos pacientes quando o LCR é avaliado após 7 dias de doença. Tem sido atribuída à resposta imune do hospedeiro ao organismo, e não à infecção direta, contudo, em um estudo brasileiro incluindo 39 amostras de LCR de pacientes com anormalidades meníngeas, o DNA de Leptospira foi detectado no LCR pela técnica de PCR em 59 por cento dos casos.
  • Meningoencefalite – é uma complicação bastante rara, geralmente apresentando achados de imagem compatíveis com encefalomielite disseminada aguda (ADEM). É, portanto, mais provavelmente associada à fase imunológica. 
  • Neurite óptica – geralmente ocorre no contexto de uma neuro-retinite, com potenciais sequelas visuais. Neurite óptica autoimune posterior à recuperação da leptospirose foi também descrita. 
  • Neuropatia periférica – casos de síndrome de Guillain-Barrè (SGB), com manifestações típicas desta síndrome, foram descritos após a fase inicial da doença. 
  • Outras manifestações – casos de mielite aguda, miosite e disautonomia e encefalite límbica anti-NMDA desencadeada por Leptospira foram também descritos. 

O diagnóstico da leptospirose é feito pelo quadro clínico, sorologia, pesquisa de antígeno, cultura, ou pela PCR em amostras de sangue. A avaliação das manifestações neurológicas requer exames de imagem, preferencialmente a ressonância de crânio ou neuroeixo (quando há suspeita de mielite). A eletroneuromiografia é de grande importância nos casos de acometimento do sistema nervoso periférico. 

O exame de LCR é fundamental nestes casos, sendo que os exames realizados e os achados encontram-se na tabela abaixo:  

 

Exames em LCR Achados
Citologia e bioquímica Pode haver uma pleocitose linfocítica ou neutrofílica com concentrações de proteína leve a moderadamente elevadas, com concentração normal da glicose, sendo possível haver hipoglicorraquia.
Avaliação da barreira hematoencefálica e da imunoprodução intratecal Índice de IgG, Nomograma de Reiber, Pesquisa de bandas oligoclonais: podem auxiliar a identificar um processo inflamatório sistêmico (com bandas em espelho no soro e LCR) ou uma resposta inflamatória compartimentalizada no SNC (índice de IgG aumentado e bandas apenas em LCR e não no soro)
Microbiologia específica Cultura opara Leptospira nos meios de Fletcher, Ellinghausen-McCullough-Johnson-Harris ou polissorbato 80
Biologia molecular PCR para Leptospirose. 
Exclusão de outras causas infecciosas Microbiologia convencional para bactérias

Pesquisa e Cultura para Fungos e M. tuberculosis

PCR para enterovírus, família herpes e/ou painéis: FilmArray – painel molecular para 14 diferentes agentes de meningites e encefalites, BDMAx vírus e bactérias

PCR para fungos, Lyme, M. tuberculosis

 

Bibliografia consultada: