Introdução
As encefalites autoimunes (EAIs) representam um grupo heterogêneo de doenças inflamatórias do sistema nervoso central, caracterizadas pela presença de anticorpos contra antígenos neuronais ou gliais. A apresentação clínica pode incluir distúrbios psiquiátricos, crises epilépticas, comprometimento cognitivo e distúrbios do movimento. O diagnóstico precoce e preciso dessas condições é fundamental para evitar desfechos neurológicos irreversíveis. Nesse contexto, o Consenso Brasileiro sobre Diagnóstico e Tratamento das Encefalites Autoimunes foi elaborado para estabelecer diretrizes baseadas em evidências e padronizar a investigação desses quadros no Brasil.
Justificativa
As encefalites autoimunes são frequentemente subdiagnosticadas ou confundidas com outras condições neurológicas, como encefalites infecciosas, síndromes psiquiátricas primárias ou doenças neurodegenerativas. O exame do líquido cefalorraquidiano (LCR) é um dos pilares na investigação dessas condições, sendo essencial tanto para excluir causas infecciosas quanto para confirmar a presença de biomarcadores inflamatórios e autoanticorpos. A padronização dos métodos diagnósticos, incluindo o uso combinado de tissue-based assay (TBA) e cell-based assay (CBA), melhora significativamente a acurácia na detecção de anticorpos antineuronais e orienta a conduta terapêutica.
Alterações do Líquor
O LCR desempenha um papel crucial no diagnóstico das encefalites autoimunes e paraneoplásicas. Alterações típicas no LCR incluem pleocitose moderada, hiperproteinorraquia e presença de bandas oligoclonais, que indicam produção intratecal de imunoglobulinas. Além disso, a detecção de autoanticorpos específicos no LCR é essencial para o diagnóstico. A análise do LCR pode ainda mostrar níveis elevados de citocinas inflamatórias, refletindo a atividade imunológica no SNC.
Principais síndromes clínicas
Anti-NMDAR
Patogênese
- NMDARs são ligados a efrina B2 (EphB2) – uma tirosina quinase de que se liga e fosforila os NMDARs, controla a localização e a função das subunidades dos NMDARs nas sinapses
- Anticorpos contra NMDAR interrompem a interação entre NMDARs e EphB2
- Dispersão e internalização de NMDARs através de endocitose
Quadro clínico:
- Precedido por sintomas prodrômicos virais que geralmente ocorrem cerca de 4 a 14 dias antes do início
- Apresentação neuropsiquiátrica aguda
- Convulsões
- Comprometimento cognitivo
- Cerca de 1–4 semanas depois, os pacientes geralmente desenvolvem um distúrbio de movimento característico, disautonomia e coma
- Estereotipias, coreia e distonia não classicamente observadas juntas em outros distúrbios do movimento
- Síndrome psiquiátrica isolada
- Aproximadamente 45 por cento das pacientes do sexo feminino com mais de 18 anos têm teratomas ovarianos uni ou bilaterais
- Menos de 9 por cento das mulheres com menos de 14 anos têm um teratoma
- Os teratomas ovarianos são frequentemente revelados por ressonância magnética e tomografia computadorizada (TC) do abdômen e da pelve
- Em pacientes do sexo masculino, a detecção de tumor é rara
- Outros tumores: testicular, teratoma do mediastino, CPPC, linfoma de Hodgkin, cistadenofibroma ovariano e neuroblastoma
Anti-LGI-1R (Leucine‑rich glioma‑inactivated 1)
- Segunda forma mais comum de encefalite autoimune
- Sub reconhecida devido ao seu início frequentemente insidioso, às convulsões focais sutis e à sua predileção por homens idosos
- Crises
- Crises distônicas faciobraquiais patognomônicas
- Crises com bradicardia, alterações térmicas e autonômicas
Patogênese
- Os anticorpos LGI1 interrompem a ligação de LGI1 a ADAM22/23, o que reduz os receptores AMPA pós-sinápticos, resultando em hiperexcitabilidade.
- Na encefalite por anticorpos CASPR2, os anticorpos alteram o complexo VGKC-contactina-CASPR2, levando à excitabilidade alterada.
Quadro clínico
- As crises focais precedem a encefalite límbica (LE) em cerca de 75% dos casos
- Convulsões frequentes e resistentes a ASM
- LE com distúrbios de memória proeminentes
- Distúrbios psiquiátricos
Diagnóstico
- RM
- Normal ou
- Hipersinal do hipocampo
- Anormalidades no EEG
- Hiponatremia sérica por síndrome de secreção inapropriada do hormônio antidiurético (SIADH)
Anti-CASPR-2
- Sinais de acometimento do SNP
- Neuromiotonia (NMT)
- NMT pode ser observada isoladamente ou em combinação com LE
- Síndrome de Morvan
- Distúrbios autonômicos e do sono
- Anticorpos CASPR2 e LGI1 frequentemente coexistem
- Ataxia
- Distúrbios do movimento
- Crises focais (70%)
- Dor significativa, tipicamente neuropática (52%)
Encefalomielite anti-Hu (ANNA-1)
- As síndromes paraneoplásicas anti-Hu são frequentemente multifocais, resultantes do envolvimento da substância cinzenta cortical, lobos temporais, tronco cerebral, cerebelo, gânglios da raiz dorsal e/ou sistema nervoso autônomo
- Sintomas podem permanecer restritos aos gânglios da raiz dorsal, causando uma neuronopatia sensorial subaguda
- CPCP é encontrado na maioria dos doentes com encefalite anti-Hu
- Algumas crianças com anticorpos anti-Hu apresentam síndrome de opsoclonia-mioclonia-ataxia (OMAS) e neuroblastoma
- O quadro neurológico é uma causa frequente de morte, particularmente quando há disfunção autonômica e do tronco cerebral
Encefalite associada a Ma2
- Geralmente associada a tumores testiculares de células germinativas, principalmente seminoma
- Antígeno Ma2 é expresso seletivamente nos neurônios e no tumor testicular
- Apresentação clínica
- Encefalopatia límbica isolada ou combinada
- Encefalite diencefálica
- Encefalite do tronco cerebral
- Sonolência diurna excessiva
- Anormalidades na RM frequentes nessas regiões cerebrais
- Alterações inflamatórias no LCR
- Tumores testiculares de células germinativas são as neoplasias associadas mais comuns
Encefalite anti-GAD65
- Títulos elevados contra GAD65 podem estar associados a três síndromes:
- Síndrome da pessoa rígida e variantes
- Ataxia cerebelar
- Encefalite com convulsões farmacorresistentes do lobo temporal
- Anticorpos GAD65 com títulos elevados no LCR e em mais de 80% há síntese intratecal
- Baixos títulos de anticorpos GAD65 podem ser encontrados no soro de pacientes com diabetes mellitus tipo 1, indivíduos saudáveis e pacientes com uma variedade de distúrbios não imunológicos
- Determinação de que uma síndrome neurológica está associada a anticorpos anti-GAD deve ser baseada na presença de anticorpos no LCR e na síntese intratecal de anticorpos contra o GAD65
Encefalite Autoimune Soronegativa
Manifestações Clínicas:
- Presença de pelo menos um dos seguintes sintomas, que sugere uma encefalite de etiologia autoimune:
- Alterações subagudas na memória de trabalho, estado mental ou sintomas psiquiátricos
- Convulsões inexplicáveis de início recente.
- Déficits neurológicos focais.
- Movimentos anormais, como discinesias ou mioclonias.
“Highlights” do Consenso Brasileiro
- Critérios Diagnósticos: O consenso reforça a importância do exame de LCR para a caracterização de processos inflamatórios, com destaque para a presença de pleocitose, aumento do índice IgG e bandas oligoclonais.
- Pesquisa de Autoanticorpos: A recomendação é que a investigação de anticorpos antineuronais seja realizada simultaneamente no soro e no LCR, utilizando as técnicas de TBA e CBA.
- Exclusão de Causas Infecciosas: O exame do LCR deve incluir PCR para herpesvírus e outras infecções virais, fundamentais para descartar encefalites infecciosas que podem mimetizar EAIs.
- Classificação por Subtipos: O consenso destaca que as EAIs mais comuns no Brasil incluem encefalite anti-NMDAR, encefalite anti-LGI1 e encefalite límbica associada a anticorpos anti-GABAB.
- Papel da Raquimanometria: A pressão de abertura elevada pode ser observada em alguns casos, especialmente na encefalite anti-NMDAR.
- Abordagem Terapêutica: O início precoce do tratamento, preferencialmente dentro das primeiras quatro semanas, é essencial para um melhor prognóstico, sendo a primeira linha composta por metilprednisolona associada à imunoglobulina intravenosa (IVIG) ou plasmaférese.
Conclusão
O Consenso Brasileiro sobre Encefalites Autoimunes estabelece diretrizes claras para a investigação e manejo dessas condições, enfatizando o exame do LCR como ferramenta indispensável no diagnóstico diferencial. A identificação precoce e a estratificação adequada do tratamento podem impactar diretamente na recuperação funcional dos pacientes, reduzindo morbidade e melhorando a qualidade de vida. Profissionais de saúde devem estar atentos a esses avanços para garantir uma abordagem mais eficaz e baseada em evidências na prática clínica.
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