Distúrbios Cognitivos de Causa Infecciosa: Diagnóstico e Papel do Líquido Cefalorraquidiano

Distúrbios Cognitivos de Causa Infecciosa:

Diagnóstico e Papel do Líquido Cefalorraquidiano

 

Os distúrbios cognitivos representam um desafio clínico significativo devido à sua natureza multifatorial. Embora doenças neurodegenerativas sejam as principais causas de declínio cognitivo, causas infecciosas devem ser consideradas, especialmente em pacientes com instalação subaguda ou rápida do quadro. As infecções do sistema nervoso central (SNC), como neurotuberculose, neurossífilis, HIV, encefalites virais e infecções fúngicas ou parasitárias, podem se manifestar com comprometimento cognitivo progressivo, frequentemente associado a outros sinais neurológicos e, em algumas ocasiões, as alterações cognitivas são as que predominam.

 

Epidemiologia e Relevância Clínica

Distúrbios cognitivos secundários a infecções podem ocorrer em indivíduos imunocompetentes ou imunossuprimidos. A neurossífilis pode se apresentar com um fenômeno semelhante à demência frontotemporal em estágios avançados, enquanto o HIV pode levar a uma encefalopatia progressiva. Pacientes com infecções fúngicas ou parasitárias do SNC (como criptococose e neurocisticercose) também podem desenvolver síndromes demenciais, de forma subaguda. A relevância desses diagnósticos reside na possibilidade de tratamento específico, tornando o reconhecimento precoce essencial.

 

Causas Infecciosas de Distúrbios Cognitivos

 

Neurossífilis:

A neurossífilis é uma complicação tardia da sífilis causada pelo Treponema pallidum. Em cerca de 40% dos casos a bactéria Treponema pallidum invade o sistema nervoso central, mas na maioria dos casos a infecção em SNC não progride e, por esta razão, apenas 3,5% dos casos de sífilis cursam com neurossífilis. Estima-se que a neurossífilis seja duas vezes mais frequente em pessoas coinfectadas com o HIV. Suas manifestações neurológicas podem ser divididas em fases. As fases potencialmente associadas a alterações cognitivas são

  • Neurossífilis meningovascular: cursa com meningite, acidente vascular cerebral, lesão de nervos cranianos e mielopatia.
  • Paralisia geral: caracterizada por alterações neuropsiquiátricas, demência, ataxia e a clássica pupila de Argyll-Robertson. A destruição neuronal progressiva nesses casos pode resultar em síndromes demenciais irreversíveis se não tratadas precocemente.

 

O diagnóstico laboratorial da neurossífilis é baseado em testes realizados no soro e no líquor (LCR). Os testes são classificados em não treponêmicos (testes usando “Venereal Disease Research Laboratório” [VDRL] ou a reagina plasmática rápida [RPR] como antígenos; ou treponêmicos, por imunofluorescência (FTA-ABs), teste de aglutinação de partículas (TTPA) ou ELISA, usando o próprio treponema como antígeno. Os testes treponêmicos são altamente sensíveis, mas não são úteis na monitorização terapêutica pois a positividade pode persistir por longos períodos após tratamento. Já os testes não treponêmicos são menos sensíveis, mas mais úteis para monitorização terapêutica.

 

  • HIV e NeuroAIDS:

A infecção pelo HIV pode levar à demência associada ao HIV, caracterizada por declínio cognitivo progressivo, desatenção e atrofia cerebral na neuroimagem. As condições associadas ao HIV e que podem causar um quadro predominantemente marcado por alterações cognitivas são:

  • Leucoencefalopatia multifocal progressiva (LEMP) — A LEMP é uma infecção oportunista causada pela reativação do vírus JC/BK/BK no contexto de imunossupressão grave (contagem de CD4 <200 células/µL). Os pacientes com LMP apresentam caracteristicamente déficits neurológicos focais rapidamente progressivos e comprometimento cognitivo.
  • Encefalopatia associada ao HIV — A encefalopatia pelo HIV é uma leucoencefalopatia desmielinizante grave com lesões proeminentes da substância branca em pacientes altamente imunocomprometidos com HIV (CD4 <200 células/µL), especialmente aqueles que não estejam em uso de TARV. Geralmente se apresenta como uma demência subcortical com comprometimento da memória e da velocidade de processamento, sintomas depressivos e distúrbios do movimento.
  • Encefalite por citomegalovírus — A encefalite por citomegalovírus (CMV) resulta da reativação desse vírus em pacientes com contagens de CD4 <50 células/µL que não estejam em uso de terapia antiretroviral. Apresenta-se como uma encefalite difusa ou ventriculoencefalite. Os pacientes apresentam delirium, confusão mental e anormalidades neurológicas focais. A ventriculoencefalite por CMV também pode causar defeitos nos nervos cranianos. Os pacientes com encefalite por CMV geralmente também apresentam envolvimento retiniano ou gastrointestinal.

 

  • Doença de Whipple:

É uma infecção rara do SNC causada pela bactéria Tropheryma whipplei, podendo levar a deterioração cognitiva, oftalmoplegia, mioclonias e movimentos anormais involuntários. Além disso, pode ocorrer uma forma subaguda ou crônica de encefalopatia progressiva, com comprometimento da memória, confusão mental e alteração de comportamento. O diagnóstico é confirmado pela PCR no LCR e pela detecção da bactéria em biópsias de tecido intestinal.

 

  • Doença de Lyme:

É causada pela espiroqueta Borrelia burgdorferi, e pode resultar em neuroborreliose tardia, levando a déficits cognitivos. Esses casos raros estão associados a uma encefalite leve. A Borreliose humana brasileira, ou Síndrome de Baggio-Yoshinari (SBY), é uma condição endêmica própria do Brasil, causada por espiroquetas do gênero Borrelia, transmitida por carrapatos dos gêneros Amblyomma e Rhipicephalus e que tem semelhanças clínicas com a Doença de Lyme (DL). A SBY distingue-se da Doença de Lyme, pois os vetores transmissores desta pertencem ao complexo Ixodes ricinus. Adicionalmente, do ponto de vista clínico a enfermidade brasileira evolui com recorrências dos sintomas e desordens imunológicas. A DBY apresenta, com maior frequência, a ocorrência de transtornos psiquiátricos e distúrbios cognitivos que, apesar de não possuírem sintomatologia específica, incluem, principalmente, perda de memória, distúrbios de linguagem e alterações do sono.

 

 

  • Outras infecções neurológicas com possível repercussão cognitiva:

A tuberculose do SNC pode causar meningite crônica, hidrocefalia e tuberculomas, levando a síndromes demenciais progressivas. O LCR tipicamente apresenta hipoglicorraquia, pleocitose linfocítica e aumento de proteínas.

Dentre as encefalites virais, o herpes simplex é a causa mais comum de encefalite viral, podendo resultar em alterações cognitivas graves e irreversíveis. Normalmente leva a um quadro encefalítico agudo que pode resultar em sequelas na esfera da memória e comportamento, em função do acometimento do lobo temporal. A PCR para HSV-1/2 no LCR é fundamental para o diagnóstico.

Infecções fúngicas como a criptococose pode causar meningoencefalite crônica, levando a alterações cognitivas e comportamentais. Pesquisa direta, cultura e o antígeno criptocócico no LCR são testes sensíveis para o diagnóstico.

A neurocisticercose, causada pelo Taenia solium, pode cursar com crises epilépticas, hidrocefalia e alterações cognitivas progressivas. A pesquisa de anticorpos no LCR e a neuroimagem auxiliam no diagnóstico.

O Linfoma Primário do SNC (PCNSL) está geralmente associado ao Epstein-Barr vírus (EBV), em pacientes imunossuprimidos, e pode ser diagnosticado por PCR para EBV no LCR.

 

 

Diagnóstico Laboratorial das Infecções do SNC com déficit cognitivo

 

O diagnóstico das infecções do SNC baseia-se na combinação de achados clínicos e exames laboratoriais. O exame do líquido cefalorraquidiano (LCR) é essencial para a confirmação diagnóstica, incluindo:

 

Neurossífilis:

Os parâmetros liquóricos analisados são:

  • Contagem de glóbulos brancos no LCR,
  • Determinação da concentração de proteína – a presença de proteinorraquia – aumento de proteína > 45 mg/dL – em casos suspeitos, contribui para indicar a necessidade de tratamento,
  • Avaliação da imunoprodução intratecal, com bandas oligoclonais frequentemente presentes no LCR e ausentes no soro,
  • Testes imunológicos: Os testes treponêmicos são altamente sensíveis, mas não são úteis na monitorização terapêutica pois a positividade pode persistir por longos períodos após tratamento. Já os testes não treponêmicos são menos sensíveis, mas mais úteis para monitorização terapêutica.
  • Reação em cadeia da polimerase (PCR) no LCR para amplificação de regiões conservadas do DNA do Treponema pallidum tem sido estudado. O seu valor diagnóstico, incluindo a sua sensibilidade e especificidade não estão bem estabelecidos. A capacidade da PCR em identificar neuroinvasão em pacientes assintomáticos ou com formas latentes da doença também não é conhecida.

 

  • HIV e NeuroAIDS:

A análise do LCR deve incluir a contagem total e diferencial de células, glicose, proteína, lactato, coloração e cultura para bactérias e fungos. A maioria dos pacientes com HIV apresenta pleocitose leve com ou sem concentração elevada de proteínas. Por esse motivo, os testes de rotina geralmente não diferenciam a causa da lesão do SNC. Mesmo em pacientes com abscesso bacteriano do SNC, os achados do LCR geralmente refletem um padrão parameníngeo com <500 leucócitos/µL, geralmente linfomonocitária, uma concentração normal de glicose e uma concentração de proteína normal ou levemente elevada. As culturas do LCR nos abscessos cerebrais bacterianos geralmente são negativas.

Além dos exames gerais do LCR, outros testes são de grande valor no diagnóstico etiológico dos quadros neurológicos em pacientes com HIV:

  • Imunofenotipagem − A citologia do LCR pode ajudar no diagnóstico de linfoma se for positiva, mas isso ocorre em apenas 15 por cento dos casos. Pacientes com suspeita de linfoma primário do SNC (PCNSL) e citologia negativa devem ser submetidos à imunofenotipagem.
  • Antígeno criptocócico – A pesquisa do antígeno criptocócico por imunocromatografia é um teste sensível e específico, permitindo um diagnóstico rápido de meningite criptocócica e criptococomas.
  • PCR para T. gondii − A detecção por PCR de T. gondii no LCR pode ser útil no diagnóstico de toxoplasmose quando o resultado é positivo, pois a especificidade varia de 96 a 100 por cento; no entanto, a sensibilidade desse teste é de pouco mais de 50% e, portanto, um teste negativo não é suficiente para descartar o diagnóstico.
  • PCR para o vírus JC/BK/BK – a detecção por PCR do DNA do vírus JC/BK/BK na leucoencefalopatia multifocal progressiva (LMP) tem uma sensibilidade de 74 a 93% e uma especificidade de 92 a 100%.
  • PCR para EBV – É usada para o diagnóstico de PCNSL e potencialmente evitar uma biópsia cerebral.
  • PCR para CMV

 

  • Doença de Whipple:

Como as manifestações neurológicas da doença de Whipple têm as consequências mais incapacitantes, a PCR para Tropheryma whipplei deve ser realizada no líquor sempre que houver suspeita da doença de Whipple como causa dos sintomas neurológicos. A PCR para T. whipplei também deve ser realizada no LCR sempre que a doença de Whipple for diagnosticada, mesmo na ausência de sintomas neurológicos. Muitos pacientes com doença de Whipple assintomáticos do ponto de vista neurológico apresentam DNA de T. whipplei detectado na PCR do LCR. A observação de que a PCR do líquor frequentemente é positiva em pacientes sem sintomas neurológicos sugere que os sintomas tardios no SNC provavelmente refletem a progressão de uma infecção inicialmente oculta.

 

  • Doença de Lyme:

O líquor deve ser realizado na suspeita de doença de Lyme do SNC. Casos raros foram descritos em que os anticorpos contra Borrelia burgdorferi foram detectáveis no LCR, mas não no sangue. Os pacientes geralmente apresentam um perfil inflamatório no líquor e níveis elevados de imunoglobulina. O índice de anticorpos para Lyme no LCR é particularmente útil nesses casos. O DNA da Borrelia deve ser investigado no LCR pela PCR. 

 

 

  • Outras investigações:

Além destas investigações direcionadas aos agentes supracitados, ouros testes devem ser reaizados, tais como PCR para agentes infecciosos como o herpes simplex e Mycobacterium tuberculosis e o JCV, pesquisa de antígenos fúngicos e parasitários para investigação de criptococose e neurocisticercose.

            A realização do exame do LCR completo aumenta a sensibilidade diagnóstica, permitindo tratamento precoce e prevenindo sequelas neurológicas.

 

Considerações Finais

Os distúrbios cognitivos infecciosos devem ser considerados no diagnóstico diferencial de comprometimento cognitivo de instalação atípica. Além da neurossífilis, diversas outras infecções podem comprometer a cognição. O exame do LCR é uma ferramenta essencial para confirmação diagnóstica e direcionamento do tratamento adequado, prevenindo complicações irreversíveis.

 

Referências

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