Hepatites virais: manifestações neurológicas e o liquor 

A hepatite é uma condição médica definida por uma inflamação do fígado. Diversos vírus podem causar hepatite, mas os principais são referidos como tipos A (HAV), B (HBV), C (HCV), D (HDV) e E (HEV). Alguns outros vírus, tais como o herpes simplex tipo 1 (HSV-1), o citomegalovírus (CMV) e o vírus Epstein-Barr (EBV), também podem causar hepatite.

O espectro clínico da hepatite viral varia de uma infecção aguda assintomática e inaparente até um quadro fulminante e fatal. A condição é aguda quando dura menos de 6 meses e crônica quando persiste por mais tempo. Os sintomas típicos da hepatite viral aguda incluem febre, mal-estar, náuseas, vômitos, desconforto abdominal, colúria, icterícia e acolia fecal. Os sintomas menos comuns são mialgia, prurido, diarréia, artralgia e erupção cutânea. 

As enzimas hepáticas aspartato transaminase (TGO) e alanina aminotransferase (TGP) têm um aumento variável durante a fase prodrômica da hepatite aguda e precedem o aumento da bilirrubina. 

O espectro dos distúrbios desencadeados por infecções crônicas com vírus hepáticos varia desde um quadro subclínico persistente até uma doença hepática crônica rapidamente progressiva, como cirrose e até mesmo, o carcinoma hepatocelular. Tanto a disfunção hepática aguda quanto a crônica podem levar à encefalopatia hepática (HE), uma disfunção cerebral que se desenvolve como resultado de uma doença hepática grave, como na hepatite fulminante, na cirrose, ou no shunt portossistêmico, em função do acúmulo de amônia e outros produtos potencialmente tóxicos para o sistema nervoso central. 

Manifestações neurológicas

Manifestações neurológicas no sistema nervoso central (SNC) e no sistema nervoso periférico (SNP) têm sido descritas, em associação com a infecção aguda ou crônica pelos vírus da hepatite. Mecanismos imunomediados parecem ser os mais frequentes, embora haja casos descritos de neuroinvasão por esses vírus. Sintomas neurológicos já foram descritos em associação com todos os vírus da hepatite, exceto o vírus D (HDV). 

HAV

Há descrições de complicações no SNC, incluindo relatos de casos de encefalite, encefalomielite disseminada aguda (ADEM), mono ou multifásica, meningoencefalite e meningite. Há também relatos de neuromielite óptica parainfecciosa associadas a este vírus.

As manifestações do Sistema Nervoso Periférico (SNP) incluem mononeurite simples e multiplex, e diferentes variantes de Síndrome de Guillain-Barré (SGB). Enquanto a maioria dos pacientes apresentam polirradiculoneuropatia desmielinizante, alguns têm envolvimento axonal dominante. A pesquisa de RNA do HAV no liquor (LCR) tende a ser negativa. 

HBV

Até 20% dos pacientes com infecção por HBV apresentam complicações extra- hepáticas, incluindo a doença do soro, artrite, poliartralgias, manifestações dermatológicas, poliarterite nodosa, glomerulonefrite, crioglobulinemia mista e manifestações neurológicas. A maioria das manifestações extra-hepáticas é imunomediada.

O SNC pode ser acometido em decorrência da poliarterite nodosa das artérias cerebrais, forma grave de vasculite que acomete vasos de pequeno e médio calibre. Outras manifestações em SNC incluem mielite transversa desmielinizante aguda e recidivante. Embora existam poucos relatos, foi descrita a presença do DNA desse vírus no LCR de pacientes com mielite aguda por HBV.

Pacientes com doença crônica pelo HBV podem ter uma paraparesia espástica lentamente progressiva, semelhante àquela observada na infecção pelo vírus linfotrópico T do tipo 1 (HTLV-1). Casos de ADEM após hepatite viral aguda também já foram relatados. 

As complicações do SNP incluem neuropatias periféricas, mononeuropatias e SGB. A SGB pode se desenvolver antes, durante ou depois da hepatite. A ocorrência de neuropatias periféricas pode estar ou não ligada à presença de crioglobulinemia. 

HCV

O HCV pode afetar outros órgãos além do fígado. Até 50% dos pacientes com infecção crônica pelo VHC têm uma ou mais manifestações extra-hepáticas. As manifestações diretamente ligadas ao vírus C incluem crioglobulinemia mista, glomerulonefrite, porfiria cutânea tardia e Síndrome Sicca/Síndrome de Sjögren.

O envolvimento do SNC pelo VHC pode ocorrer de várias formas. Há relatos bem documentados do envolvimento do SNC em pacientes com vasculite, principalmente em pacientes com crioglobulina positiva. Como consequência, uma taxa aumentada de complicações isquêmicas e hemorrágicas intracranianas é encontrada em pacientes HCV-positivos. Outras complicações raras do SNC pelo vírus C incluem leucencefalopatia, neuropatias cranianas, encefalites e encefalopatias. Há, inclusive, raríssimos relatos de leucoencefalopatia multifocal progressiva (LMP). 

Entre os vírus hepáticos, o HCV é o mais comumente associado a mielopatias inflamatórias. A ressonância magnética da medula espinhal revela, em geral, anormalidades multissegmentares. Há também raros relatos de neurite óptica associada a mielite.

O comprometimento cognitivo foi detectado em quase metade dos pacientes infectados pelo HCV sem cirrose, sendo ainda maior em pacientes com cirrose, incluindo prejuízos seletivos de atenção, concentração e velocidade psicomotora. Os sintomas da depressão são encontrados em até 30% dos pacientes infectados pelo VHC.

A neuropatia periférica é considerada a mais comum complicação neurológica da infecção pelo HCV, chegando a 9% dos casos. Os achados neurológicos foram mais frequentes entre pacientes positivos para crioglobulina mas, mesmo assim, uma proporção significativa de indivíduos negativos para crioglobulina apresentam envolvimento do SNP.

Essas neuropatias incluem principalmente anormalidades sensoriais que afetam as partes distais do SNP e são muitas vezes assimétricas, podendo, mais tarde, ser complicadas pelo envolvimento de fibras motoras.

A biópsia pode mostrar dano axonal grave associado a vasculite de pequenos vasos, além de um infiltrado inflamatório. Há alta frequência de envolvimento do sistema nervoso autônomo. Outras formas de neuropatias observadas na infecção por HCV incluem variantes desmielinizantes e polirradiculoneurite. 

HEV

Manifestações extra-hepáticas na hepatite viral por HEV podem ocorrer e incluem anemia aplástica, doenças glomerulares e distúrbios neurológicos incluindo polirradiculopatia inflamatória, SGB, neurite braquial bilateral, encefalite e ataxia/miopatia proximal. Em alguns casos de infecção crônica por HEV, o material genético do HEV foi detectado no LCR, indicando uma replicação viral local ocorrendo no SNC. Além disso, diferentes quasiespécies de HEV podem coexistir no soro e no LCR na infecção crônica por HEV, semelhante ao que ocorre em relação ao HIV. Assim, é possível que sinais e sintomas neurológicos possam resultar do surgimento de variantes HEV neurotrópicas, em função da compartimentalização.

Com relação ao acometimento do SNP, há casos de amiotrofia nevrálgica, paralisia de Bell, além de diversos casos de SGB associados à infecção aguda por HEV. Em alguns casos de SGB foram identificados anticorpos anti-GM1 ou GM2. 

O papel do exame de liquor (LCR)

O LCR tem um papel extremamente relevante na avaliação das complicações neurológicas associadas às hepatites virais. Por meio das informações obtidas no LCR é possível obter não apenas um diagnóstico mais preciso, como também informações relevantes para a terapia. 

O exame de LCR deve ser realizado em todos os pacientes com hepatites virais e com manifestações neurológicas agudas, com as seguintes finalidades:

  • Afastar outras causas infecciosas em pacientes com meningites e encefalites;   
  • Contribuir, nos casos duvidosos, para o diagnóstico diferencial de encefalopatia hepática e manifestações inflamatórias em SNC;
  • Conformar o diagnóstico de SGB em pacientes com quadro suspeito; 
  • Identificar potencial neurotropismo dos vírus da hepatite. 

O LCR também deve ser avaliado em pacientes com manifestações neurológicas crônicas, cujos sinais e sintomas ocorreram após a identificação da infecção pelo vírus da hepatite. As finalidades são:

  • Estabelecer relação causa-efeito entre o vírus e a manifestação neurológica;    
  • Documentar a possível replicação do vírus nos tecidos cerebrais e suas consequências; 
  • Identificar o sistema nervoso como potencial reservatório de variantes do vírus da hepatite, bem como, avaliar suas consequências para a evolução da doença.

Conclusão

As hepatites virais agudas e crônicas estão associadas a manifestações neurológicas. Essas complicações são relativamente incomuns e se desenvolvem principalmente no contexto de múltiplas manifestações extra-hepáticas. A existência de doenças do SNC ou SNP causadas por vírus hepáticos deve ser levada em consideração na investigação dessas condições. Diferentes mecanismos patogenéticos potenciais podem estar envolvidos nas manifestações do SNC e do SNP, incluindo o potencial neurotropismo e a imunopatogênese.

Uma estratégia individualizada é necessária para o tratamento de complicações neurológicas de infecções por vírus hepáticos. Antivirais devem ser usados, se disponíveis para a infecção específica. Há também potenciais efeitos colaterais da terapia antiviral, principalmente no SNP. Quando um processo patológico imunomediado envolvido for identificado, pode-se recomendar uma terapia imunossupressora ou imunomoduladora individualizada. 

Referências

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