A Hidrocefalia de Pressão Normal idiopática (HPNi) é uma síndrome caracterizada por alterações de marcha, déficit cognitivo e incontinência urinária, sendo comumente citada como uma das causas potencialmente tratáveis de demência. Estudos sobre a prevalência da HPNi no Brasil apresentam índices que variam de 0,5 a 10% entre os casos de demência. A tríade manifesta-se em aproximadamente 50% dos casos, enquanto 95% dos pacientes apresentam alterações de marcha.
A fisiopatologia da síndrome não é totalmente conhecida. Distúrbios na dinâmica do líquido cefalorraquidiano (liquor), aumento da resistência do fluxo liquórico e comprometimento da capacidade de reabsorção, decorrente possivelmente de alterações viscoelásticas do parênquima encefálico associadas ao envelhecimento, são algumas das hipóteses.
Apesar de diferentes etiologias, o acúmulo do liquor, com consequente expansão das câmaras ventriculares, culmina na compressão dos tecidos cerebrais adjacentes, ocasionando os sinais e sintomas observados. O tratamento é a realização de neurocirurgia para a colocação de sistema de derivação ventrículo-peritoneal.
Testes funcionais complementares, como o Tap-Test (TT), simulam a ação de drenagem da válvula e auxiliam no processo diagnóstico e seletivo de candidatos com melhores chances de resposta ao tratamento. O TT é utilizado mundialmente por ser um procedimento médico realizado em ambiente ambulatorial, sem a necessidade de equipamentos especializados. Segundo guidelines internacionais, o TT possui Valor Preditivo Positivo (VPP) de 73 a 100%, e Valor Preditivo Negativo (VPN) de 23 a 42%. Devido ao baixo VPN, o resultado negativo do TT não exclui pacientes do tratamento cirúrgico; e, nestes casos, é necessário acompanhamento médico e a repetição do procedimento pode ser indicada.
Diagnóstico da HPNi
De acordo com guidelines internacionais, o diagnóstico da HPNi deve seguir os passos abaixo descritos, sendo o TT o exame complementar mais indicado em decorrência de baixos custos e riscos para o paciente.
- História e avaliação neurológica completa.
- Neuroimagem compatível (Ressonância Magnética, de preferência)
- Presença de ao menos 2 sinais/sintomas descritos abaixo:
- Alterações da marcha (ex.: ataxia, dificuldades no retorno, quedas, parkinsonismo).
- Comprometimento cognitivo (ex.: memória e funções executivas).
- Incontinência urinária e/ou fecal.
Abaixo, algumas condições que fazem parte do diagnóstico diferencial da síndrome, por poderem ocorrer concomitantemente ou mimetizar os sintomas da HPNi.
Condições que constituem diagnósticos diferenciais da HPNi |
Distúrbios neurodegenerativos: Doença de Alzheimer (DA), Doença de Parkinson, Doença Corpos de Lewy, Doença de Huntington, Demência Frontotemporal, Degeneração Corticobasal, Paralisia Supranuclear Progressiva, Esclerose Lateral Amiotrófica, Atrofia de Múltiplos Sistemas, Encefalopatia Espongiforme. |
Demência vascular: Eemência Multi-infarto, Doença de Binswanger, Arteriopatia Cerebral Autossômica Dominante com Infartos Subcorticais e Leucoencefalopatia (CADASIL), Insuficiência Vertebrobasilar. |
Outras hidrocefalias: Estenose Aquedutal, Hidrocefalia Obstrutiva. |
Doenças infecciosas: Doença de Lyme, HIV, Sífilis. |
Distúrbios urológicos: infecção do trato urinário, Câncer de bexiga ou próstata. |
Diversos: deficiência de B12, Epilepsia, Depressão, Traumatismo Cranioencefálico, Estenose Espinhal, Malformação de Chiari, Encefalopatia de Wernicke, Meningite Carcinomatosa, tumor de coluna, Artrose de Joelhos. |
A Importância do Diagnóstico e Tratamento
Estima-se que menos de um a cada cinco idosos com HPNi recebam tratamento adequado. Até recentemente, as informações referentes à evolução natural da doença em idosos com HPNi não tratada eram limitadas, devido à escassez de estudos.
O prognóstico natural da HPNi tornou-se mais conhecido após uma pesquisa publicada em 2017, que investigou ao longo de cinco anos o comportamento evolutivo e a taxa de mortalidade em indivíduos idosos com HPNi não-tratada. O estudo incluiu 1.235 participantes, com idade ≥ 75 anos, e contou com grupo controle. No estudo, nenhum participante passou por tratamento cirúrgico ao longo de cinco anos. Baseando-se somente em dados clínicos e radiológicos, os pesquisadores dividiram os participantes em quatro grupos: (1) sem HPNi; (2) com alargamento ventricular assintomático [AVA]; (3) possível HPNi; e (4) provável HPNi. Não havia diferenças significativas de idade e gênero entre os grupos. Ao fim de cinco anos, os autores encontraram os seguintes resultados:
- 19,5% dos idosos sem HPNi, 27,6% dos idosos com AVA ou possível HPNi e 87,5% dos idosos com provável HPNi foram a óbito;
- Enquanto cerca de 20% dos idosos sem HPNi desenvolveram alguma síndrome demencial, 68% dos idosos com AVA, possível HPNi e provável HPNi pioraram seu quadro cognitivo e/ou desenvolveram alguma síndrome demencial ao longo do estudo;
- Quase todos os participantes com HPNi apresentarem piora de pelo menos um de seus sinais e/ou sintomas;
- 50% dos idosos com AVA ou possível HPNi evoluíram para um quadro de provável HPNi ao longo do estudo;
- Indicadores radiológicos são os marcadores mais precoces na HPNi e os sinais clínicos servem como indicadores da progressão da doença;
- Independentemente do estágio da HPNi, idosos nessas condições têm 3,56 vezes mais chances de apresentar piora cognitiva e/ou desenvolver alguma síndrome demencial.
De acordo com o conhecimento científico atual, o procedimento mais indicado para investigação de idosos com suspeita de HPNi é:
- Idosos com alargamento ventricular, porém assintomáticos, devem ser acompanhados e reavaliados periodicamente.
- Uma vez identificada a presença de sinais clínicos, principalmente comprometimento cognitivo e alterações de marcha, o paciente deveria ser submetido a um exame de TT. Caso o TT apresente resultado positivo, a neurocirurgia deve ser considerada como opção de tratamento.
- Caso o exame TT apresente resultado negativo, ele deve ser repetido periodicamente (de três em três ou de seis em seis meses) ao longo de um período de um a três anos. Se ao longo desse intervalo o paciente apresentar resultados positivos no TT, a neurocirurgia deve ser considerada como opção de tratamento.
Indivíduos idosos com HPNi sintomática tendem a apresentar níveis significativos de dependência funcional, demandando atenção dedicada por parte de familiares e/ou cuidadores. Com o passar do tempo, e caso o tratamento adequado não ocorra, os quadros motor, cognitivo e urinário tendem a piorar, até que a dependência funcional completa se estabeleça.
Além disso, a ausência de tratamento adequado aumenta consideravelmente as chances de piora ou mesmo antecipa o surgimento de síndromes demenciais, como Doença de Alzheimer, Demência Vascular ou mesmo Doença de Parkinson, ou Parkinsonismo. Por isso, é importante considerar a HPNi como um diagnóstico diferencial para essas e outras síndromes demenciais que, por natureza, são irreversíveis; ao contrário da HPNi, uma síndrome demencial potencialmente reversível.
Em resumo, o diagnóstico adequado não somente proporciona a indicação precisa da derivação ventrículo-peritoneal, evitando cirurgias desnecessárias ou ineficazes, como também leva à recuperação da marcha, estabiliza as funções cognitivas e, em alguns casos, melhora os quadros de apatia e alterações comportamentais, que exigem terapêuticas variadas e são de difícil controle. Ainda, obtém-se a diminuição de custos de internação por imobilismo e/ou institucionalização, fatores importantes que surgem como potenciais benefícios do tratamento.
Protocolo TAP-TEST
O protocolo de avaliação do TT utilizado no Laboratório Senne Liquor foi elaborado para ser aplicado em um único dia e fornecer comparações objetivas a respeito da performance em testes sensíveis às principais alterações observadas em paciente com HPNi, ou seja, alterações da marcha e déficit cognitivo de perfil frontal subcortical. A vantagem de ser realizado em ambiente ambulatorial é a diminuição dos custos e a substituição da internação por um procedimento de menor duração e menores riscos ao paciente.
- Avaliação Neuropsicológica e da Marcha
A bateria de testes neuropsicológicos foi desenvolvida para avaliar as funções cognitivas mais suscetíveis à deterioração na HPNi, como memória, atenção e velocidade de processamento. A análise de desempenho na avaliação cognitiva é realizada após a punção, com o auxílio do índice de mudança confiável (Reliable Change Index – RCI) para comparar as alterações significativas nos escores das duas avaliações, evitando o efeito de aprendizagem.
A avaliação da marcha ocorre por meio do Teste de Caminhada de 10 metros (10MWT) em um espaço plano, iluminado e sem distratores, que conta com um percurso total de 14 metros de comprimento e 1,50 metro de largura. O paciente é filmado com um equipamento que registra até 1.200 quadros por segundo do seu deslocamento. Posteriormente, as performances pré e pós-punção são comparadas por um software que analisa parâmetros espaço-temporais da marcha, com margens de erro espacial e temporal menores que um centímetro e 0,01 segundos, respectivamente. A análise comparativa considera o paciente responsivo ao TT quando há redução de 20% do tempo necessário para percorrer o percurso; redução de 20% do número de passos; ou melhora de 10% em ambos, desde que não haja piora nos demais parâmetros espaço-temporais.
- Punção Liquórica de até 40 ml
A punção lombar é realizada por um médico com experiência comprovada, e se dá em espaço adequado e estéril. Visando à segurança do paciente, são exigidos o pedido médico e o exame de neuroimagem confirmando a condição de Hidrocefalia, e são retirados até 40 ml, com anestesia local.
- Janela de duas horas de espera
Estudos anteriores propõem que as reavaliações da marcha e neuropsicológica devem ocorrer entre duas a quatro horas após a punção liquórica. Sendo assim, e visando ao menor desconforto do paciente, priorizamos a reavaliação após duas horas.
- Reavaliação Neuropsicológica e da Marcha
As reavaliações da marcha e neuropsicológica seguem os mesmos procedimentos adotados na avaliação anterior à punção. Quando necessário, o paciente e/ou cuidador são orientados a preencher um logaritmo das condições clínicas do paciente na avaliação inicial e sobre sua evolução nos sete dias após a punção.
Alguns dados sobre HPN
- A tríade completa (marcha, cognição e incontinência) está presente em pouco mais de 50% dos casos. Os sintomas tendem a surgir concomitantemente, sendo a alteração da marcha, seguida pela alteração da memória, o primeiro e o segundo sinais clínicos a aparecer ao longo da história natural da doença.
- A produção liquórica, assim como sua renovação, ajuda a purificar conteúdos tóxicos, como o peptídeo amiloide. Durante o envelhecimento, não somente a produção liquórica tende a reduzir, como também passa a encontrar maior resistência para fluir entre as câmaras ventriculares.
- Distúrbios comunicantes da circulação liquórica, de sua produção e reabsorção, embora não sejam determinantes, corroboram para o desenvolvimento de HPNi e DA. Ou seja, se a produção ou reabsorção liquórica estão comprometidas, a chance de DA é maior; se o fluxo entre as câmaras ventriculares está comprometido, a chance de HPNi é aumentada. Sem a intervenção, a chance de HPNi converter-se em DA é significativa.
- O diagnóstico precoce melhora o prognóstico do paciente, dando-lhe oportunidade de recuperação parcial ou completa e de alcançar níveis ótimos de qualidade de vida.
- A intervenção cirúrgica na HPNi aumenta a expectativa de vida em aproximadamente três anos.
- A taxa de retorno do tratamento da HPNi de acordo com as escalas QALYS (quality-adjusted life) e ICER (incremental cost-effective ratio) é de aproximadamente 10 a 15 mil dólares nos próximos 18 a 21 meses.
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