As lesões cerebrais associadas à infecção pelo HIV incluem os quadros decorrentes da própria ação do HIV no sistema nervoso e infecções oportunistas. Embora as infecções oportunistas tenham sido significativamente reduzidas com a utilização da terapia antiretroviral altamente ativa (HAART), o transtorno neurocognitivo associado ao HIV (HAND), diretamente relacionado à neuroinvasão pelo HIV, continua sendo uma condição comum entre esses indivíduos, ocorrendo em 15–50% dos casos.
As infecções oportunistas podem manifestar-se na forma de lesões de parênquima encefálico, que podem ser expansivas ou não expansivas, ou de inflamação das meninges.
HAND:
Essa síndrome apresenta-se com manifestações que vão desde o comprometimento neurocognitivo assintomático até a demência associada ao HIV (HAD). O comprometimento neurocognitivo assintomático é a forma mais branda de HAND, definida como um quadro com prejuízo no funcionamento neurocognitivo identificado através de testes neurocognitivos mas que pode não ser reconhecido pelo indivíduo, não interferindo com as atividades de vida diária.
O transtorno neurocognitivo menor tem déficits semelhantes ao comprometimento neurocognitivo assintomático, mas produz um leve comprometimento das atividades diárias. A HAD é definida como uma deficiência acentuada no funcionamento cognitivo e produz interferência marcante no funcionamento diário. A progressão temporal das várias formas de HAND na era HAART não é clara e estudos longitudinais têm revelado uma evolução bidirecional da disfunção cognitiva aso invés de uma progressão linear.
Lesões expansivas:
São caracterizadas pela presença de edema e por exercer efeito de massa nas estruturas circundantes. Tais lesões geralmente captam contraste, indicando inflamação local e quebra da barreira hematoencefálica. As causas mais comuns são:
- Neurotoxoplasmose — representa a reativação da doença de uma infecção anterior latente e é tipicamente observada em pacientes com contagens de CD4 <100 células/µL e sorologia positiva (anticorpos IgG) para Toxoplasma gondii, que não estejam em uso de TARV. Os sintomas incluem febre, cefaleia, estado mental alterado, sinais neurológicos focais e crises epilépticas.
- Linfoma primário do sistema nervoso central (PCNSL) — PCNSL ocorre geralmente em pacientes com contagens de CD4 <50 células/µL que não estão em TARV. Os pacientes apresentam cefaleia, confusão mental, letargia, alterações cognitivas, sinais neurológicos focais e crises epilépticas. Sintomas constitucionais, como febre, sudorese noturna e perda de peso ocorrem em mais de 80% dos pacientes.
- Abscesso cerebral bacteriano/fúngico — Abscessos cerebrais causados por Staphylococcus spp, Streptococcus spp, Salmonella spp, Aspergillus spp, Nocardia spp e Listeria spp foram relatados em pacientes com HIV e imunossuprimidos. Os sintomas são parecidos com a neurotoxoplasmose e PCNSL e as imagens também podem apresentar características semelhantes.
- Tuberculoma — é um acúmulo granulomatoso de tubérculos coalescentes que ocorre devido à tuberculose disseminada. Deve-se suspeitar de tuberculoma em pacientes com histórico ou suspeita de tuberculose sistêmica. Os tuberculomas podem se apresentar como uma lesão focal sem evidência de doença sistêmica ou infecção meníngea. Os tuberculomas também podem ocorrer durante a reconstituição imunológica após o paciente ter iniciado a TARV.
Lesões não expansivas:
As lesões não expansivas geralmente não realçam após a injeção de material de contraste e não estão associadas a risco de herniação. As causas mais comuns são a leucoencefalopatia multifocal progressiva (LMP), a encefalopatia associada ao HIV (HIVE) e a encefalite por citomegalovírus (CMV).
- Leucoencefalopatia multifocal progressiva — PML é uma doença desmielinizante causada pela reativação do vírus JC/BK/BK no contexto de imunossupressão grave contagem de CD4 <200 células/µL). A PML também pode ocorrer no cenário de reconstituição imunológica à medida que a carga viral do HIV diminui e a contagem de células CD4 aumenta. Embora a PML normalmente se apresente como uma lesão do SNC com efeito de massa, a PML associada à IRIS pode ser expansiva e realce com o contraste. Os pacientes com LMP apresentam caracteristicamente déficits neurológicos focais rapidamente progressivos e comprometimento cognitivo.
- Encefalopatia associada ao HIV — A encefalopatia pelo HIV é uma leucoencefalopatia desmielinizante grave com lesões proeminentes da substância branca em pacientes altamente imunocomprometidos com HIV (CD4 <200 células/µL) que não estejam em uso de TARV. Geralmente se apresenta como uma demência subcortical com comprometimento da memória e da velocidade de processamento, sintomas depressivos e distúrbios do movimento. Pode ser confundida com a PML.
- Encefalite por citomegalovírus — A encefalite por citomegalovírus (CMV) resulta da reativação desse vírus em pacientes com contagens de CD4 <50 células/µL que não estejam em uso de terapia antiretroviral. Apresenta-se como uma encefalite difusa ou ventriculoencefalite. Os pacientes apresentam delirium, confusão mental e anormalidades neurológicas focais. A ventriculoencefalite por CMV também pode causar defeitos nos nervos cranianos. Os pacientes com encefalite por CMV geralmente também apresentam envolvimento retiniano ou gastrointestinal.
Papel do líquor (LCR):
O estabelecimento de um diagnóstico etiológico deve levar em consideração os resultados dos exames imunológicos, do líquor (LCR) e da histopatologia (se realizada), o grau de imunodepressão do paciente, sintomas e sinais clínicos, achados de neuroimagem e o uso de medicamentos concomitantes (por exemplo, HAART) que podem alterar a probabilidade de uma determinada etiologia.
- Punção lombar — A punção lombar (LP) deve ser realizada em todos os pacientes com HIV e que apresentem lesões do SNC, a menos que seja contraindicada. Quando a LP não puder ser realizada em tempo hábil, o tratamento empírico deve ser considerado se houver forte suspeita, por exemplo, de neurotoxoplasmose.
- Contra-indicações para a punção lombar — Herniação uncal iminente é uma contraindicação absoluta para punção lombar. A LP também é contraindicada em pacientes com lesões expansivas, especialmente na fossa posterior, devido ao risco de herniação transtentorial, além de risco aumentado de sangramento (trombocitopenia grave, coagulopatia, etc).
- Avaliação de rotina do LCR — a análise do LCR deve incluir a contagem total e diferencial de células, glicose, proteína, lactato, coloração e cultura para bactérias e fungos. A maioria dos pacientes com HIV apresenta pleocitose leve com ou sem concentração elevada de proteínas. Por esse motivo, os testes de rotina geralmente não diferenciam a causa da lesão do SNC. Mesmo em pacientes com abscesso bacteriano do SNC, os achados do LCR geralmente refletem um padrão parameníngeo com <500 leucócitos/µL, geralmente linfomonocitária, uma concentração normal de glicose e uma concentração de proteína normal ou levemente elevada. As culturas do LCR nos abscessos cerebrais bacterianos geralmente são negativas.
Além dos exames gerais do LCR, outros testes são de grande valor no diagnóstico etiológico dos quadros neurológicos em pacientes com HIV:
- Imunofenotipagem − A citologia do LCR pode ajudar no diagnóstico de linfoma se for positiva, mas isso ocorre em apenas 15 por cento dos casos. Pacientes com suspeita de linfoma primário do SNC (PCNSL) e citologia negativa devem ser submetidos à imunofenotipagem. Quando esta é negativa deve ser feita uma avaliação diagnóstica adicional para PCNSL que é a reação em cadeia da polimerase (PCR) para o vírus Epstein-Barr (EBV). A biópsia cerebral é restrita a casos de lesões expansivas não responsivas ao esquema para neurotoxoplamose e em que estes exames citados não permitiram uma definição diagnóstica.
- Antígeno criptocócico – A pesquisa do antígeno criptocócico por imunocromatografia é um teste sensível e específico, permitindo um diagnóstico rápido de meningite criptocócica e criptococomas.
- PCR para T. gondii − A detecção por PCR de T. gondii no LCR pode ser útil no diagnóstico de toxoplasmose quando o resultado é positivo, pois a especificidade varia de 96 a 100 por cento; no entanto, a sensibilidade desse teste é de pouco mais de 50% e, portanto, um teste negativo não é suficiente para descartar o diagnóstico.
- PCR para o vírus JC/BK/BK – a detecção por PCR do DNA do vírus JC/BK/BK na leucoencefalopatia multifocal progressiva (LMP) tem uma sensibilidade de 74 a 93% e uma especificidade de 92 a 100%. Em pacientes utilizando HAART a sensibilidade desse teste cai para 58% pois a reconstituição imune diminui a replicação do vírus JC/BK abaixo do nível de detecção do ensaio. Assim, um paciente com um resultado de PCR positivo que tenha um quadro radiológico compatível pode ser diagnosticado como tendo PML. Pacientes que apresentam achados clínicos e radiológicos consistentes com PML, mas têm uma PCR negativa do vírus JC/BK no LCR, ainda assim podem ter PML se outros diagnósticos tiverem sido descartados.
- PCR para EBV – É usada para o diagnóstico de PCNSL e potencialmente evitar uma biópsia cerebral. A sensibilidade e a especificidade variam amplamente de forma que uma PCR positiva em um paciente imunossuprimido com achados consistentes com PCNSL não exclui por completo outras causas de doença do SNC.
Outros testes em LCR para casos pacientes selecionados devem ser realizados quando o exame inicial de LCR não foi diagnóstico ou quando há forte suspeita de uma determinada etiologia com base em características clínicas e de imagem.
- O LCR de pacientes com fatores de risco para tuberculose deve ser avaliado pela coloração e cultura de bacilos ácido-resistentes (BAAR), bem como pela PCR, sendo este último o teste com maior sensibilidade, rapidez no resultado, permitindo ainda avaliar, dependendo da plataforma utilizada, avaliar a susceptibilidade às drogas tuberculostáticas.
- O LCR de pacientes com suspeita de encefalite por citomegalovírus (CMV) deve ser submetido a PCR para CMV, que tem uma sensibilidade superior a 80% e especificidade de 90%.
- A carga viral do HIV no LCR é usada para avaliar o fenômeno de escape viral no LCR. Uma carga viral de HIV detectável no LCR maior do que a carga viral de HIV no plasma é sugestiva de fenômeno de escape viral do LCR, o que aumenta o risco de distúrbios neurocognitivos associados ao HIV e da encefalopatia pelo HIV. Quando a carga viral do HIV no LCR é detectável pode-se avaliar ainda o genótipo do HIV, que pode contribuir no manejo terapêutico.
Conclusão:
A punção lombar e o exame de LCR são fundamentais na abordagem diagnóstica de pacientes infectados pelo HIV. Os exames convencionais e as técnicas mais modernas, através da biologia molecular, aumentam a precisão diagnóstica e frequentemente evitam a realização de procedimentos mais invasivos, como a biópsia cerebral.
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