Linfoma do Sistema Nervoso e o Liquor

O linfoma do sistema nervoso central (SNC) consiste em 2 subtipos principais: linfoma primário do sistema nervoso central (LPSNC) e complicações neurológicas por linfoma sistêmico. Saiba mais sobre cada um deles logo abaixo.

LINFOMA PRIMÁRIO DO SISTEMA NERVOSO CENTRAL (SNC)

O linfoma primário do SNC (LPSNC) representa um subconjunto raro, mas altamente agressivo, do linfoma não-Hodgkin (LNH). O LPSNC envolve o neuroeixo, incluindo a órbita, o cérebro, as leptomeninges e a medula espinhal. Historicamente, o prognóstico do linfoma primário do sistema nervoso central (SNC) tem sido muito sombrio, com sobrevida global de 1,5 meses quando não tratado e uma taxa de sobrevida em 5 anos de 30%. A introdução de regimes de quimioterapia à base de metotrexato em altas doses trouxe uma melhora substancial no tratamento de pacientes com LPSNC, viabilizando uma melhor sobrevida. 

O LPSNC é observado em aproximadamente 6% dos pacientes com AIDS, e geralmente ocorre quando a contagem de CD4 é muito baixa. Pacientes transplantados também têm um risco aumentado, sendo mais alto durante o primeiro ano após o transplante. Imunodeficiências primárias, como Wiskott Aldrich e ataxia telangiectasia conferem um risco de 4% de desenvolvimento de LPSNC. O vírus Epstein-Barr (EBV) se correlaciona altamente com o LPSNC em estados de imunodeficiência de células T, como pacientes em uso de imunossupressores após transplante de órgãos. O EBV também está associado a 100% dos linfomas primários do SNC em pacientes com AIDS.

Até 80% dos pacientes com LPSNC apresentam déficits neurológicos focais e os sintomas geralmente se correlacionam com a localização da lesão. O comprometimento cognitivo é a apresentação clínica mais frequente, seguida por distúrbios da marcha, déficits neurológicos focais, hipertensão intracraniana e crises epilépticas. O diagnóstico definitivo é feito por neuroimagem e biópsia estereotáxica, sendo que o exame de liquor (LCR) tem um papel relevante. 

LINFOMAS SISTÊMICOS: COMPLICAÇÕES NEUROLÓGICAS

As complicações neurológicas nos linfomas podem se manifestar de diversas maneiras: 

  1. complicações diretas: envolvimento do sistema nervoso central ou periférico pelo linfoma;
  2. complicações indiretas: compressão medular, síndromes paraneoplásicas, complicações vasculares e neuropatias associadas a paraproteínas; 
  3. complicações associadas ao tratamento. 

Dependendo da causa específica, os pacientes podem apresentar sintomas leves e autolimitados ou déficits neurológicos graves, incapacitantes e irreversíveis que podem ser fatais. Como as imunoterapias são cada vez mais utilizadas em pacientes com linfoma, há um aumento no encaminhamento de pacientes com sintomas e sinais neurológicos. Dado que várias condições podem levar à mesma apresentação clínica, pode ser um desafio determinar a etiologia exata. A diferenciação entre apresentações é necessária para orientar o tratamento.

Complicações diretas

  • Envolvimento do SNC

O linfoma não Hodgkin (LNH) pode envolver o SNC no momento do diagnóstico inicial ou no momento de uma recidiva. A incidência global de envolvimento do SNC é de 2% a 7% e, embora vários fatores de risco, incluindo o subtipo histológico (linfoma de Burkitt e linfoma linfoblástico), tenham sido identificados, como idade avançada, doença em estágio avançado (III/IV), ≥1 sítio extranodal, lactato desidrogenase (DHL) sérica elevada e envolvimento de órgãos específicos, como glândulas supra-renais e rins, também são fatores que elevam o risco. A recidiva do SNC com o linfoma de Hodgkin (LH) é rara, com uma incidência de <0,5% e com associação com o EBV. O envolvimento do SNC por LNH sistêmico ou LH pode incluir cérebro, medula espinhal, olhos, leptomeninges (inclui espaço subaracnóideo e LCR) e dura-máter, isoladamente ou em combinação. Quimioterapia, agentes direcionados, como ibrutinibe e lenalidomida, e terapia com células T CAR são alguns dos tratamentos utilizados. 

  • Envolvimento do sistema nervoso periférico

O LNH pode envolver os nervos periféricos e plexos, por invasão direta ou infiltração. A neurolinfomatose pode causar neuropatia periférica dolorosa ou radiculopatia. Ocasionalmente, os pacientes apresentam mononeuropatias dos nervos ciático, radial, mediano ou mesmo craniano, causando dor radicular, parestesias e fraqueza nas pernas ou braços ou diplopia e fraqueza facial, respectivamente. O tratamento envolve radiação focal ou quimioterapia sistêmica. Por se tratar de uma complicação rara, é importante considerar no diagnóstico diferencial outras causas não relacionadas de neuropatias, como medicamentos; deficiências de vitaminas ou nutrientes; condições metabólicas e autoimunes; e, em pacientes com história de LNH ou LH, causas paraneoplásicas ou neuropatia induzida por quimioterapia.

Complicações indiretas

  • Compressão da medula espinhal

A compressão da medula espinhal pode causar déficits neurológicos graves e permanentes e deve ser diagnosticada e tratada emergencialmente para reverter os sintomas e prevenir sequelas devastadoras. Lesões epidurais causadas pelo envolvimento do linfoma nos corpos vertebrais, coluna vertebral ou linfonodos paravertebrais podem levar à compressão da medula espinhal. A maioria dos pacientes apresenta dor, déficits motores e sensitivos e disfunção vesical que podem evoluir rapidamente. O diagnóstico e o tratamento tardios podem resultar em déficits neurológicos permanentes. O diagnóstico geralmente é realizado por meio da ressonância magnética. Corticoesteroides em altas doses podem melhorar os sintomas e sinais neurológicos até que o tratamento definitivo, incluindo quimioterapia e/ou radiação, possa ser instituído. Os pacientes ainda podem necessitar de intervenção neurocirúrgica para manter a estabilidade da coluna vertebral.

  • Síndromes paraneoplásicas

As síndromes paraneoplásicas clássicas são complicações raras dos linfomas, com maior incidência no LH do que no LNH. Ao contrário do caso dos tumores sólidos, os anticorpos onconeurais raramente são identificados, com exceções como a degeneração cerebelar paraneoplásica e encefalite límbica, mais comumente observadas no LH do que no LNH. Na degeneração cerebelar os sintomas incluem vertigem, ataxia de tronco e membros, disartria, diplopia e nistagmo. A ressonância magnética pode ser normal. Anticorpos anti-Tr são encontrados no soro e no LCR. A encefalite límbica paraneoplásica (síndrome de Ophelia) apresenta-se com confusão, perda de memória, alucinações e distúrbios comportamentais. A ressonância magnética cerebral pode ser normal ou estar associada a anormalidades nos lobos temporais mediais bilaterais, no hipocampo e na amígdala. Esta síndrome rara está associada a um anticorpo anti-mGLU5 (receptor metabotrópico de glutamato tipo 5). Frequentemente, os pacientes se recuperam totalmente após o tratamento do LH subjacente. 

Neuropatias sensório-motoras paraneoplásicas; neuronopatias ou condições semelhantes à síndrome de Guillain-Barré; ou, mais comumente, polirradiculopatia desmielinizante inflamatória crônica (PDIC) presente em pacientes com LNH com curso subagudo e ausência de anticorpos onconeurais. As neuronopatias sensoriais geralmente têm um prognóstico ruim. A dermatomiosite também é observada no LNH e a presença de um anticorpo p155 é altamente sugestiva de uma malignidade subjacente. 

  • Complicações vasculares

A angiite primária do SNC é uma condição granulomatosa rara, não infecciosa, que afeta os vasos sanguíneos cerebrais. Este efeito pode ser observado em associação com LH, imediatamente antes ou após o diagnóstico. Pode ser uma condição autoimune ou estar relacionada a uma infecção pelo vírus varicela-zoster. A ressonância magnética geralmente mostra infartos ou realce leptomeníngeo, a angiografia cerebral pode demonstrar imagens sugestivas de vasculite e o LCR pode demonstrar pleocitose, mas esses são achados inespecíficos. A biópsia cerebral é necessária em alguns casos. Os pacientes geralmente se recuperam com corticosteróides e tratamento do LH.

O linfoma intravascular (LIV) é um LNH extranodal agressivo que envolve os lúmens de pequenos vasos, principalmente os capilares. Embora qualquer órgão possa estar envolvido, o SNC é o mais comum, ocorrendo em 42% dos casos de LIV, seguido da pele. Os pacientes geralmente apresentam sintomas semelhantes aos de um acidente vascular cerebral (AVC), febre, fadiga e erupções cutâneas. A ressonância magnética cerebral normalmente mostra imagens vasculares. O tratamento é realizado com antineoplásicos específicos, mas o risco de recidiva é alto e o prognóstico é ruim. 

  • Neuropatias associadas a paraproteínas

A neuropatia periférica é a complicação neurológica mais comum das paraproteinemias, incluindo linfoma linfoplasmocitário com IgM (macroglobulinemia de WaDLenström), gamopatia monoclonal de significado desconhecido, mieloma múltiplo, amiloidose de cadeia leve amilóide e POEMS (polineuropatia, organomegalia, endocrinopatia, gamopatia monoclonal e alterações cutâneas). A maioria dessas polineuropatias está associada à paraproteína IgM, das quais até 70% estão relacionadas ao anticorpo anti-glicoproteína associada à mielina (MAG). 

  • Complicações relacionadas ao tratamento

Complicações neurológicas podem resultar de vários tratamentos de LNH e LH, incluindo quimioterapia, radiação, transplante autólogo de células-tronco (TCT), TCT alogênico, terapias direcionadas e imunoterapia. Cefaleia, AVCs e neuropatias periféricas podem se desenvolver em pacientes com linfoma, e é necessário determinar se são desencadeados pelo linfoma ou pelo seu tratamento, ou se não estão relacionados à neoplasia. Vários fatores podem afetar a incidência e gravidade da neurotoxicidade. Estes incluem idade, dose do medicamento e via de administração, disfunção renal ou hepática concomitante, tratamentos de modalidade combinada e condições neurológicas preexistentes. 

O EXAME DE LCR NO LINFOMA DO SNC 

Os achados clássicos do LCR no linfoma do SNC incluem aumento da pressão de abertura, baixa concentração de glicose, alta concentração de proteína, pleocitose linfocítica, citomorfologia positiva e imunofenotipagem por citometria de fluxo para células malignas. Embora a maioria dos pacientes não apresente todas essas características, um exame do LCR totalmente normal é incomum. Em particular, a combinação de alta concentração de proteínas e pleocitose linfocítica é frequentemente encontrada sem outras anormalidades. A avaliação radiológica com ressonância ou tomografia deve ser realizada antes da punção lombar. Os itens e achados do LCR mais frequentemente encontrados são: 

  • Exame geral do LCR: O LCR é anormal em mais de 80% dos linfomas do SNC no momento do diagnóstico. A contagem de células é normal em 33% a 60 % dos pacientes e a proteína do LCR é normal em 33% a 55% dos pacientes. Uma contagem celular elevada (>10 células/μL) no LCR correlaciona-se com resultados positivos na citologia oncótica. Os níveis de glicose podem ser baixos no LCR em pacientes com linfoma, sendo inferior a 50 mg/dL em 54% e inferior a 15 mg/dL em 19% dos pacientes. 
  • Índice de IgG/Bandas Oligoclonais (BOCs): O índice de IgG e as BOCs são medidas da síntese intratecal de imunoglobulinas e são testes úteis no diagnóstico de distúrbios neurológicos inflamatórios. A presença de síntese intratecal de anticorpos contribui para o diagnóstico de síndromes paraneoplásicas relacionadas aos linfomas.
  • Citomorfologia: A citomorfologia pode fornecer informações diagnósticas definitivas no linfoma do SNC. Entalhes nucleares pontiagudos, citoplasma irregular e tamanho celular aumentado (> 2,5 vezes o limite superior do normal) são sugestivos de linfoma. Há alguma sobreposição nas características morfológicas dos linfócitos neoplásicos e inflamatórios, e isso pode dificultar a interpretação. A sensibilidade da citologia do LCR varia amplamente (2%-32%), refletindo potencialmente diferenças nas populações estudadas e no volume, manuseio e interpretação das amostras. Vários fatores técnicos podem afetar a sensibilidade da citomorfologia. A sensibilidade melhora quando um volume maior (≥10,5 mL) é analisado e quando amostras seriadas de LCR são avaliadas. A sensibilidade é reduzida após exposição a corticosteroides, causando citólise.
  • Citometria de Fluxo: A citometria de fluxo pode ser realizada em amostras de sangue, medula óssea, vítreo ou LCR. A citometria de fluxo do LCR é um complemento útil à citomorfologia, aumentando a sensibilidade. A citologia examina características morfológicas e a citometria de fluxo tem o potencial de fornecer informações sobre o imunofenótipo dos linfócitos em uma amostra. Quando há uma imunofenotipagem sugestiva de linfoma em LCR, um imunofenótipo anormal correspondente em sangue ou amostra de medula óssea, corrobora com o diagnóstico de linfoma sistêmico. Raramente, pode ocorrer um resultado falso positivo de LCR se uma amostra de LCR estiver contaminada por linfócitos do sangue periférico em um indivíduo com linfoma sistêmico ativo.
  • β2-Microglobulina: A β2-microglobulina é uma proteína de superfície celular associada ao antígeno HLA, cuja elevação reflete o aumento da renovação celular. Embora os níveis séricos não sejam capazes de distinguir o envolvimento sistêmico do SNC, a β2-microglobulina no LCR correlaciona-se com a presença de envolvimento do SNC em leucemias e linfomas, bem como com a resposta à terapia. É importante observar que o nível de β2-microglobulina no LCR pode estar elevado em outros distúrbios neurológicos, incluindo meningite bacteriana, reduzindo sua especificidade.
  • Desidrogenase láctica (DHL): No SNC, predominam as isoenzimas aeróbicas da DHL (DL1 e DL2), refletindo a dependência do cérebro do metabolismo aeróbio. No entanto, estados de doença, como tumores cerebrais malignos, resultam em uma fração aumentada de concentrações anaeróbicas de DHL (DL4 e DL5) no LCR. Proporções de DL5 no LCR maiores ou iguais a 2,8% da DHL total foram 93% sensíveis ao envolvimento do SNC. No entanto, a especificidade da elevação da isoenzima DL5 no LCR é limitada, uma vez que elevações também podem ser observadas em condições como meningite bacteriana ou gliomas.
  • Reação em cadeia da polimerase para o vírus Epstein-Barr (EBV): O vírus Epstein-Barr (EBV) tem sido associada ao desenvolvimento de linfoma do SNC tanto na AIDS quanto nos distúrbios linfoproliferativos pós-transplante. A PCR no LCR foi proposta como uma ferramenta diagnóstica útil para identificar casos de infecção ativa por EBV e distinguir linfoma de encefalites infecciosas, incluindo a neurotoxoplasmose cerebral. Na AIDS os estudos encontraram a sensibilidade da PCR do EBV variando de 80% a 100%, com especificidade de 93% a 100%. Nos distúrbios linfoproliferativos pós-transplante, 93% dos casos confirmados por biópsia também tiveram resultados positivos de PCR para EBV no LCR. 
  • PCR para avaliação de rearranjos gênicos de imunoglobulinas: Os rearranjos de imunoglobulina (IGH e IGK) e de receptor de células T (TCRG) (-R) por PCR são ferramentas auxiliares para processos de células B e células T e diferentes tipos de amostra. A natureza paucicelular das amostras de LCR representa um desafio. Estudos têm mostrado que a análise de rearranjos por PCR é útil para definição do diagnóstico em cerca de 60% dos casos. Assim, a PCR para IGH, IGK e TCRG -R pode ajudar na interpretação e confirmação dos resultados da citometria de fluxo, particularmente quando as células linfoides neoplásicas são de baixa abundância ou exibem um imunofenótipo distinto do tumor diagnóstico.

Concluindo, a análise do LCR deve ser realizada sempre que a punção lombar for considerada factível a partir dos exames de neuroimagem. Ela deve incluir citologia, citometria de fluxo e PCR para detectar a monoclonalidade com base na cadeia pesada da imunoglobulina (IgH) ou no rearranjo gênico do receptor de células T. Além de ser relevante no diagnóstico diferencial, que inclui uma variedade de condições que podem imitar a apresentação clínica ou os padrões de ressonância magnética, como infecções e processos inflamatórios, o LCR pode ser utilizado na monitorização terapêutica dos linfomas do SNC. 

Bibliografia consultada: 

Au KLK, Latonas S, Shameli A, Auer I, Hahn C. Cerebrospinal Fluid Flow Cytometry: Utility in Central Nervous System Lymphoma Diagnosis. Can J Neurol Sci. 2020;47(3):382-388. doi:10.1017/cjn.2020.22

Chukwueke UN, Nayak L. Central Nervous System Lymphoma. Hematol Oncol Clin North Am. 2019;33(4):597-611. doi:10.1016/j.hoc.2019.03.008

Correia CE, Schaff LR, Grommes C. Central Nervous System Lymphoma: Approach to Diagnosis and Treatment. Cancer J. 2020;26(3):241-252. doi:10.1097/PPO.0000000000000449

Han CH, Batchelor TT. Diagnosis and management of primary central nervous system lymphoma. Cancer. 2017;123(22):4314-4324. doi:10.1002/cncr.30965

Hernández-Verdin I, Morales-Martínez A, Hoang-Xuan K, Alentorn A. Primary central nervous system lymphoma: advances in its pathogenesis, molecular markers and targeted therapies. Curr Opin Neurol. 2022;35(6):779-786. doi:10.1097/WCO.0000000000001115