A Dengue é uma doença viral transmitida pelo mosquito Aedes aegypti, endêmica em regiões tropicais e subtropicais do mundo, particularmente na América Latina, Sudeste Asiático e Pacífico Ocidental. Causada por um dos quatro sorotipos do vírus da Dengue (DENV-1, DENV-2, DENV-3 e DENV-4), a infecção pode variar desde formas assintomáticas até quadros clínicos mais severos, como a Dengue Grave (anteriormente conhecida como hemorrágica) e a Síndrome do Choque da Dengue.
Recentemente, tem sido reconhecido que a Dengue pode afetar o sistema nervoso central (SNC), uma condição conhecida como Neurodengue. As manifestações neurológicas são variadas e podem incluir Encefalite, Meningite, Mielite Transversa, Síndrome de Guillain-Barré e Neuropatia Periférica. Essas complicações podem ocorrer tanto durante a fase aguda da infecção quanto no período de convalescença, associadas a uma elevada morbidade e mortalidade.
Os mecanismos patogênicos da Neurodengue ainda não são completamente compreendidos, mas acredita-se que envolvam tanto a invasão direta do SNC pelo vírus quanto respostas imunológicas exageradas, incluindo a quebra da barreira hematoencefálica e a liberação de citocinas pró-inflamatórias.
A identificação precoce e o manejo adequado das manifestações neurológicas são essenciais para melhorar o prognóstico dos pacientes afetados. A seguir, revisamos as principais alterações associadas à dengue.
Manifestações Neurológicas na Dengue
Cefaleia
A cefaleia ocorre em 97,6% dos pacientes com dengue, geralmente localizada nas regiões frontal e retro-orbital, mas também pode ocorrer nas regiões occipital, cervical e temporal. É uma dor bilateral, descrita como latejante ou de pressão/aperto, com intensidade intensa na maioria dos casos.
Sintomas associados, como náuseas/vômitos, fotofobia e fonofobia, são comuns. A intensidade e as características da cefaleia não diferem entre Dengue primária e secundária, entre DF e DHF, ou entre pacientes com ou sem outros sintomas neurológicos. Raramente, a cefaleia pode ser causada por meningite linfocítica, podendo-se, nestes casos, detectar-se rigidez nucal, sinal de Kernig e sinal de Brudzinski.
Encefalite/Meningoencefalite
A Encefalite é uma das manifestações neurológicas mais graves associadas à infecção pelo vírus da Dengue. Embora seja relativamente rara, apresenta uma alta taxa de morbidade e mortalidade, o que exige uma atenção especial para o diagnóstico e o manejo clínico.
A Encefalite na Dengue pode ocorrer devido à invasão direta do vírus no sistema nervoso central ou como resultado de uma resposta inflamatória sistêmica exacerbada. Estudos sugerem que a barreira hematoencefálica pode ser comprometida durante a infecção aguda, permitindo que o vírus penetre no SNC. A presença do RNA viral no liquor de pacientes com Encefalite confirma essa possibilidade. Além disso, a resposta imunológica, incluindo a produção de citocinas pró-inflamatórias, pode contribuir para a neuroinflamação e dano neural.
O diagnóstico de Encefalite na Dengue é desafiador e requer uma abordagem multimodal. Os critérios clínicos incluem a presença de febre, cefaleia, alterações no estado mental, convulsões e sinais neurológicos focais. Exames de neuroimagem, como a ressonância magnética (RM), podem revelar sinais de inflamação cerebral e edema.
No geral, a tomografia de crânio é normal, mas pode mostrar sinais de baixa densidade e realce meníngeo. A RM pode revelar hiperintensidade em T2, com ou sem hemorragia, em tálamo, cerebelo e ponte, mas frequentemente também é normal.
A avaliação do líquido cefalorraquidiano (liquor) pode revelar níveis aumentados de glóbulos brancos, com anticorpos IgM e IgG para dengue. O RNA da doença foi detectado em amostras de liquor por PCR em 50 a 83,3% dos casos de Encefalite por Dengue.
Manifestações Neurológicas Desmielinizantes na Dengue
As manifestações neurológicas desmielinizantes, embora menos comuns, são complicações graves da infecção pelo vírus da dengue. Essas manifestações incluem síndromes como a Mielite Transversa, Neuropatia Desmielinizante, Encefalomielite Aguda Disseminada (ADEM), Neuromielite Óptica (NMO) e os Distúrbios do Espectro da Neuromielite Óptica (NMOSD).
O diagnóstico das manifestações desmielinizantes na dengue envolve uma combinação de avaliação clínica, neuroimagem e análise do liquor. Clinicamente, os pacientes podem apresentar fraqueza muscular progressiva, alterações sensitivas, disfunção autonômica e, no caso da Mielite Transversa, paralisia flácida com comprometimento sensitivo abaixo do nível da lesão.
Exames de imagem, como a ressonância magnética, são fundamentais para identificar áreas de desmielinização no SNC. A RM pode mostrar lesões hiperintensas na medula espinhal ou no cérebro, típicas de processos desmielinizantes. Na ADEM, as lesões são tipicamente multifocais e podem envolver tanto a substância branca quanto a cinzenta. No caso da NMO e NMOSD, as lesões são frequentemente encontradas no nervo óptico e medula espinhal.
O liquor desempenha um papel crucial no diagnóstico diferencial das condições desmielinizantes associadas à Dengue. Na análise, pode-se observar pleocitose, aumento de proteínas e, em alguns casos, a presença de bandas oligoclonais. A reação em cadeia da polimerase (PCR) para o vírus da Dengue no liquor é geralmente negativa nestes casos e, quando positiva, resulta em geral da quebra de barreira e passagem passiva do vírus para o SNC.
Além disso, a detecção de síntese de anticorpos intratecais contra o vírus da Dengue no líquido cefalorraquidiano pode fornecer evidências adicionais da infecção viral associada às manifestações desmielinizantes. No contexto de NMOSD, a detecção de anticorpos anti-aquaporina-4 (AQP4) no soro e liquor pode ser especialmente relevante para o diagnóstico. Na ADEM, além das alterações no liquor, a presença de lesões multifocais na neuroimagem é uma característica diagnóstica importante.
Manifestações no Sistema Nervoso Periférico
Síndrome de Guillain-Barré (SGB)
Desmielinização dos nervos periféricos, com estudos eletrofisiológicos mostrando envolvimento motor e sensorial. A análise do liquor mostra contagens normais de leucócitos com concentrações aumentadas de proteínas. Os sintomas se desenvolvem em até 30 dias após a doença febril, com recuperação sem déficits neurológicos persistentes na maioria dos casos
Síndrome de Miller Fisher
Caracterizada pela tríade de oftalmoplegia, ataxia e arreflexia, associada à infecção por Dengue.
Miosite
Dor muscular e, raramente, fraqueza, com níveis aumentados de CPK. Biópsias mostram Miosite com infiltração perivascular e acúmulo de lipídios.
Acidente Vascular Cerebral (AVC)
A dengue pode causar AVC hemorrágico, relacionado ao extravasamento capilar e trombocitopenia, e AVC isquêmico, associado à Meningovasculite.
Exame de Liquor em Pacientes com Manifestações Neurológicas
O líquido cefalorraquidiano desempenha um papel fundamental no diagnóstico das manifestações neurológicas associadas à Dengue, também conhecidas como neuroarboviroses. O exame de liquor em pacientes com suspeita de envolvimento do sistema nervoso central deve ser abrangente e realizado em paralelo com a análise do soro.
As principais etapas e aspectos a serem considerados são os seguintes:
Análise Citológica e Bioquímica do Liquor
A avaliação inicial do liquor deve incluir a contagem de células (citologia) e a análise dos níveis bioquímicos, como glicose e proteínas. Na Dengue, é comum encontrar pleocitose linfocítica, com contagens de células brancas que podem variar. Os níveis de proteínas podem estar elevados, refletindo a quebra da barreira hematoencefálica ou a resposta inflamatória no SNC.
Avaliação da Barreira Hematoencefálica e Imunoprodução de Anticorpos IgG
A avaliação da barreira hematoencefálica e a produção intratecal de anticorpos IgG são essenciais para compreender a resposta imune no SNC. Os testes incluem:
- Índice de IgG: calcula a razão entre os níveis de IgG no LCR e no soro, ajustada para a albumina, que ajuda a detectar a produção local de IgG no SNC;
- Nomograma de Reiber: ferramenta gráfica utilizada para diferenciar entre a síntese intratecal de IgG e a disfunção da barreira hematoencefálica;
- Pesquisa de Bandas Oligoclonais: aplicada para detectar bandas oligoclonais específicas no liquor, indicando a produção local de anticorpos.
Pesquisa de Anticorpos Específicos
A detecção de anticorpos específicos contra o vírus da Dengue no liquor é crucial para o diagnóstico diferencial das suas manifestações neurológicas. Os testes incluem:
- Pesquisa de IgM: a presença de anticorpos IgM específicos sugere uma infecção recente ou em curso;
- Imunoprodução Intratecal de IgG: a pesquisa de IgG específica contra o vírus da Dengue pode ser útil para diferenciar entre uma infecção primária e secundária.
Exames Específicos de Biologia Molecular
A detecção do RNA viral no líquido cefalorraquidiano por métodos de biologia molecular, como a PCR, é um método sensível e específico para confirmar a presença do vírus da Dengue no SNC. Os exames incluem:
- PCR para Neuroarboviroses: pesquisa de RNA viral no liquor para Dengue, Zika, Chikungunya e Febre Amarela;
- Exclusão de outras etiologias infecciosas: a PCR pode também ser utilizada para excluir outras causas de manifestações neurológicas, como vírus da família herpes e infecções bacterianas.
Interpretação dos Resultados
A interpretação dos resultados do líquido cefalorraquidiano deve ser feita em conjunto com os achados clínicos e laboratoriais, considerando o contexto epidemiológico e os sintomas do paciente. A presença de RNA viral no liquor, juntamente com sinais clínicos de Encefalite ou Meningoencefalite, fortalece o diagnóstico de envolvimento do SNC pelo vírus da Dengue.
A análise da resposta imune intratecal, como a detecção de bandas oligoclonais específicas e a produção de IgG intratecal, fornece informações adicionais sobre o grau e a natureza da resposta inflamatória no SNC.
A análise detalhada do liquor é, portanto, indispensável para o diagnóstico preciso e o manejo adequado das complicações neurológicas da Dengue, auxiliando na diferenciação entre infecção viral direta, respostas autoimunes pós-infecciosas e outras etiologias.