O exame de líquido cefalorraquidiano (liquor) contribui para o diagnóstico de inúmeras doenças neuro-oftalmológicas e oftalmológicas, incluindo distúrbios da circulação do líquido cefalorraquidiano e doenças inflamatórias, infecciosas e tumorais.
A análise do líquido cefalorraquidiano inclui diversas variáveis, como a raquimanometria no momento da punção, a análise do aspecto e cor, o exame quimiocitológico geral e marcadores avançados, incluindo biomarcadores e exames de biologia molecular.
Apresentamos a seguir as principais condições oftalmológicas em que o líquido cefalorraquidiano traz contribuições relevantes ao diagnóstico:
Distúrbios da circulação do líquido cefalorraquidiano | ||
Condição | Achados clínicos | Achados liquóricos |
Pseudotumor cerebral | Critérios diagnósticos:ü Papiledemaü Ausência de outras alterações no exame neurológicoü Composição do líquido cefalorraquidiano normalü Aumento da pressão de abertura do líquido cefalorraquidianoü Na ausência de papiledema, o diagnóstico pode ser confirmado quando há:o Paralisia do Nervo Abducenteo Ao menos 3 das seguintes anormalidades à ressonância:· Achatamento posterior da esclera· Aumento do espaço subaracnoide perióptico· Sela turca vazia· Tortuosidade do Nervo Óptico· Estenose do seio transverso | ü Pressão de abertura – o paciente deve estar deitado e relaxado. A punção em posição sentada pode gerar resultados falso-positivos. Ansiedade ou medicamentos sedativos também podem interferir na pressão de abertura.ü A pressão normal em adultos é de até 20 cm de H20, sendo que em indivíduos obesos pode chegar a 25 cm de H2O. Em crianças com menos de 8 anos o valor normal pode chegar a 28 cm de H2O.ü A análise do líquido cefalorraquidiano, incluindo a citologia, bioquímica, reações imunológicas e biologia molecular, estão normais e não indicam outras etiologias. |
Neurites ópticas | ||
Condição | Achados clínicos | Achados liquóricos |
Neurite óptica isolada | A neurite óptica é uma condição inflamatória e desmielinizante que está altamente associada à esclerose múltipla (EM), ocorrendo em 50% dos indivíduos em algum curso da doença, mas que em alguns casos pode permanecer como achado clínico isolado não preenchendo critérios para EM. Os pacientes geralmente apresentam perda visual aguda, muitas vezes dolorosa, que geralmente é monocular. A maioria dos casos (dois terços) são retrobulbares com fundo de olho normal, enquanto um terço apresenta papilite na apresentação | · Citologia normal ou com pleocitose linfomonocitária leve· Bioquímica do líquido cefalorraquidiano – pode haver ligeiro aumento do teor de proteínas· Pesquisa de Bandas Oligoclonais (BOCs) por isoeletrofocalização – quando positivo, corrobora a hipótese de EM· Índice Kappa – pode estar positivo em alguns casos com pesquisa de BOCs negativa |
Esclerose múltipla | Doença desmielinizante que evolui com surtos e remissões. Além do nervo óptico por acometer:· Medula espinhalo Déficit de força e de sensibilidadeo Bexiga neurogênica· Cerebelo· Tronco cerebralo Diplopiao Neuralgia do trigêmeo Os critérios modificados de McDonald (2017) para o diagnóstico de EM exigem a ocorrência de surtos clínicos ou radiológicos (à ressonância) em duas topografias e em momentos distintos, além da exclusão de outras etiologias para o quadro.Em pacientes com um surto, mas com disseminação das lesões à RM em diferentes topografias, o líquido cefalorraquidiano com presença de BOCs, na ausência de BOCs no soro, confirma o diagnóstico. A forma progressiva da doença é mais rara e não evolui com surtos. A confirmação do diagnóstico é feita pela ressonância mostrando múltiplas lesões e pelo líquido cefalorraquidiano com BOCs. | · Citologia normal ou com pleocitose linfomonocitária leve· Bioquímica do líquido cefalorraquidiano – pode haver ligeiro aumento do teor de proteínas· Pesquisa de Bandas Oligoclonais (BOCs) por isoeletrofocalização – 95% dos casos de EM têm pesquisa de BOCs positiva· Índice Kappa – pode estar positivo em alguns casos com pesquisa de BOCs negativa· Neurofilamento de cadeia leve – auxilia na avaliação do grau de atividade e no monitoramento terapêutico |
NMOSD (Espectro da neuromielite óptica) | Principais características clínicas da NMOSD – Os critérios reconhecem seis características clínicas principais, que são:• Neurite óptica• Mielite aguda•Síndrome da área postrema: episódio de soluços ou náuseas e vômitos inexplicáveis•Síndrome aguda do tronco cerebral•Narcolepsia sintomática ou síndrome clínica diencefálica aguda com lesões de ressonância magnética diencefálica típicas de NMOSD•Síndrome cerebral sintomática com lesões cerebrais típicas de NMOSD Em pacientes com AQP4-IgG positivouma das características clínicas acima, usando ensaio baseado em células, apenas uma destas características é necessária. Quando o AQP4-IgG é negativo o diagnóstico requer pelo menos duas características clínicas, sendo que ao menos uma deve ser neurite óptica, mielite aguda com mielite transversa longitudinalmente extensa ou síndrome de área postrema, além da exclusão de diagnósticos alternativos | a) Investigação de barreira hematoencefálica e imunoprudução intratecal (pesquisa de BOCs, dosagem de IgG, índice de IgG, nomograma de Reiber) – a presença de BOCs deve levar à suspeita de EM,b) detecção de anti-AQ4 pelo método “cell-based” em soro e líquido cefalorraquidiano |
MOGAD (Doença associada ao anticorpo anti-glicoproteína da mielina do oligodendrócito) | As características clínicas mais importantes são:· Neurite óptica unilateral ou bilateral· Encefalomielite disseminada aguda (ADEM), resultando em alteração do estado mental, características neurológicas focais e características de mielite transversa· Mielite transversa, muitas vezes causando fraqueza nos membros, perda sensorial e disfunção intestinal, vesical ou sexual· NMOSD sem detecção de anti- AQP4-IgG· Encefalite cortical cerebral unilateral | Pesquisa do IgG anti-MOG: Os ensaios baseados em células são os ideais.•Resultado claramente positivo –título ≥1:100.•Resultado fracamente positivo –título ≥1:10 e <1:100.A especificidade varia de 97,8 a 100%.Líquido cefalorraquidiano – as BOCs são encontradas apenas em 5 a 20% dos casos. Cerca de 50% dos pacientes apresentam pleocitose no líquido cefalorraquidiano, mais comumente nos surtos. |
CRION (neuropatia óptica inflamatória crônica/recorrente) | CRION (neuropatia óptica inflamatória crônica/recorrente) é uma categoria única de NO (neuropatia óptica) inflamatória que é caracterizada por seu curso recorrente e/ou crônico, bem como por sua capacidade de resposta aos corticosteroides, com recidivas dentro de semanas ou meses após a retirada ou diminuição dos mesmos. | IgG anti-MOG e anti-AQ4 devem ser solicitados e estarem negativosLíquido cefalorraquidiano para exclusão de outras doenças |
Neuropatia óptica paraneoplásica relacionada ao anticorpo CV2/CRMP5 | Cursa com perda subaguda da visão. Além da NO podem ocorrer outros achados neurológicos como déficits motores, epilepsia, distúrbio sensorial, distúrbio de consciência, ataxia cerebelar e retinopatia. | O líquido cefalorraquidiano tem alterações inespecíficas, como aumento leve de proteínas. O anticorpo anti CV2/CRMP5 pode ser detectado no soro e líquido cefalorraquidiano. |
Doenças inflamatórias sistêmicas | Doenças autoimunes sistêmicas, incluindo o lúpus (LES), arterite de células gigantes, sarcoidose e Behcet podem cursar com NO como uma das manifestações. | O líquido cefalorraquidiano pode mostrar alterações inflamatórias inespecíficas. No caso da Síndrome de Behçet pode haver pleocitose neutrofílica. Na neurossarcoidose pode haver aumento da atividade da enzima conversora de angiotensina (ECA). |
Doenças infecciosas | ||
Sífilis ocular | A sífilis pode envolver quase qualquer estrutura ocular, mas a uveíte posterior e a panuveíte são as mais comuns e cursam com diminuição da acuidade visual. Manifestações adicionais podem incluir neuropatia óptica, ceratite intersticial, uveíte anterior e vasculite retiniana. A sífilis ocular é frequentemente, mas nem sempre, acompanhada de meningite sifilítica | O VDRL define o diagnóstico de neurossífilis, mas a sensibilidade é baixa.Já o teste treponêmico, o FTA-ABS, é sensível, mas não específico.Pleocitose e elevação da concentração de proteínas no líquido cefalorraquidiano ocorrem na neurossífilis. Quando a pesquisa de anticorpos em líquido cefalorraquidiano é negativa, mas o VDRL é positivo no soro, essas alterações inflamatórias podem indicar o diagnóstico.Novos testes, como o PCR, são promissores. |
Infecções virais | Vírus potencialmente associados à NO: HSV, EBV, CMV, VZV, Arbovírus, Influenza, SARS-Cov-2, Sarampo, Rubéola, entre outros. | O líquido cefalorraquidiano pode contribuir demonstrando alterações inflamatórias, além do PCR para detecção do genoma viral. |
Outras infecções bacterianas | Doença da arranhadura do gato, tuberculose, Doença de Lyme, Doença de Whipple, leptospirose e brucelose são algumas das bactérias que causam NO. | O líquido cefalorraquidiano pode contribuir demonstrando alterações inflamatórias, além do PCR para detecção do genoma bacteriano. |
Toxoplasmose | A toxoplasmose ocular é a entidade uveítica posterior infecciosa mais comum. Geralmente se apresenta na forma de retinocoroidite unifocal ativa, frequentemente associada à cicatriz de retinocoroidite antiga adjacente e vitrite significativa. | O diagnóstico em geral é feito através de pesquisa de anticorpos séricos e PCR no fluido ocular. O líquido cefalorraquidiano pode contribuir quando há manifestações neurológicas pela toxoplasmose. |
Bibliografia consultada:
• Bennett JL, Costello F, Chen JJ, et al. Optic neuritis and autoimmune optic neuropathies: advances in diagnosis and treatment. Lancet Neurol. 2023;22(1):89-100. doi:10.1016/S1474-4422(22)00187-9
• Kahloun R, Abroug N, Ksiaa I, et al. Infectious optic neuropathies: a clinical update. Eye Brain. 2015;7:59-81. Published 2015 Sep 28. doi:10.2147/EB.S69173
• Petzold A, Fraser CL, Abegg M, et al. Diagnosis and classification of optic neuritis. Lancet Neurol. 2022;21(12):1120-1134. doi:10.1016/S1474-4422(22)00200-9
• Wang MTM, Bhatti MT, Danesh-Meyer HV. Idiopathic intracranial hypertension: Pathophysiology, diagnosis and management. J Clin Neurosci. 2022;95:172-179. doi:10.1016/j.jocn.2021.11.029