A relação clínica da hidrocefalia com o Líquido Cefalorraquidiano

Vamos discutir no artigo de hoje sobre a relação clínica da hidrocefalia com o líquido cefalorraquidiano.

Hidrocefalia é o acúmulo sintomático de líquor (LCR) dentro dos ventrículos cerebrais. Esse acúmulo pode ser devido à obstrução no fluxo normal do LCR, diminuição de absorção no sistema venoso pelas granulações aracnóides de Pacchioni, ou em função de produção excessiva de LCR. Dandy descreveu a hidrocefalia pela primeira vez como comunicante e não comunicante (obstrutiva), no início de 1913 e, desde então, muitas outras classificações foram propostas. Em adultos, existem quatro tipos diferentes: Hidrocefalia obstrutiva, comunicante, hipersecretória e hidrocefalia de pressão normal (HPN). A hidrocefalia congênita muitas vezes faz parte de uma síndrome genética ou disrafismo espinhal.

Epidemiologia

A hidrocefalia é mais comum na infância, quando é em geral secundária a malformações congênitas e hemorragia intraventricular em bebês prematuros. Em idosos, há outro pico de prevalência da hidrocefalia devido aos casos de HPN. A prevalência global geral de hidrocefalia é de aproximadamente 85 por 100.000 indivíduos, com uma diferença significativa entre as diferentes faixas etárias; 88 por 100.000 para a população pediátrica e 11 por 100.000 em adultos. Na população idosa a prevalência de hidrocefaleia é em torno de 175 por 100.000, e mais de 400 por 100.000 para aqueles com mais de 80 anos de idade, devido à alta incidência de HPN nesta fase da vida.

Etiologia

A hidrocefalia obstrutiva decorre de um bloqueio nas vias do LCR. A obstrução ocorre mais comumente no forame Monro, no aqueduto de Sylvius, no quarto ventrículo ou no forame magno. Alguns dos tumores mais frequentes associados à hidrocefalia são ependimoma, astrocitoma subependimário de células gigantes, papiloma do plexo coróide, craniofaringioma, adenoma hipofisário, glioma hipotálamo ou do nervo óptico, hamartoma e tumores metastáticos. Os tumores da fossa posterior são comumente associados ao desenvolvimento de hidrocefalia. Doenças inflamatórias, como a neurossarcoidose; e infecciosas, como a neurocisticercose, podem também estar associadas a hidrocefalia obstrutiva. 

A hidrocefalia comunicante é causada por absorção deficiente do LCR. As causas mais comuns são alterações pós-hemorrágicas ou pós-inflamatórias. A hemorragia subaracnoide é responsável por um terço desses casos, bloqueando a absorção do LCR nas granulações aracnóideas. A meningite, especialmente bacteriana, pode ser complicada com a hidrocefalia. O traumatismo craniano é outra etiologia comum de hidrocefalia comunicante em adultos. 

A hidrocefalia hipersecretora é causada por uma hiperprodução de LCR. Trata-se de um mecanismo raro de hidrocefaleia, secundário à produção de LCR por algum tumor. Os tumores associados a este quadro são o papiloma do plexo ou, mais raramente, o carcinoma de plexo coroide. 

A HPN pode ser dividida em dois tipos: idiopática e secundária. Vários mecanismos têm sido propostos para a HPN idiopática: hidrocefalia congênita descompensada, doença cerebrovascular levando a isquemia periventricular crônica e aumento da pressão venosa central. A HPN secundária pode resultar de hemorragia subaracnóide ou ventricular, meningite prévia, traumatismo craniano ou outras condições mais raras e também capazes de causar inflamação e fibrose nas granulações aracnoideas.  

A hidrocefalia em recém-nascidos pode decorrer de hemorragia, infecções congênitas, doenças genéticas e malformações, como as de Dandy-Walker, Arnold-Chiari tipo 1 e 2, agenesia do forame de Monro, entre outras.

Sinais e Sintomas

A hidrocefalia aguda é uma condição com risco de vida e pode resultar em herniação cerebral, herniação transtentorial do lobo temporal ou herniação do cerebelo para o forame magno, e requer intervenção neurocirúrgica imediata. 

A hidrocefalia congênita geralmente está presente ao nascimento, estando associada a macrocefalia, abaulamento de fontanela, disjunção de suturas, afilamento do couro cabeludo com proeminência das veias, dificuldades respiratórias, hipoatividade e atraso de desenvolvimento. Nas formas graves de hidrocefalia não tratadas, podem ser observados outros elementos da síndrome do mesencéfalo dorsal (síndrome de Parinaud). 

A hidrocefalia adquirida pode ocorrer em qualquer idade e os sintomas são cefaleia, náuseas, vômitos explosivos, sonolência, letargia, irritabilidade, convulsões, confusão e desorientação mentais, visão turva, diplopia, incontinência urinária e intestinal, instabilidade de marcha, ataxia e alterações cognitivas. A gravidade do quadro correlaciona-se com o grau de aumento da pressão intracraniana.  

Na HPN, os sintomas clássicos compõem a tríade de Hakim: alterações de marcha, déficit cognitivo e incontinência urinária, sendo que a tríade completa é encontrada em apenas 50% dos pacientes. A marcha é caracterizada por apraxia, referida como “glue-footed gait”. Os pacientes movem-se lentamente, com pequenos passos e uma base alargada, com instabilidade postural. O transtorno cognitivo é marcado por lentificação psicomotora, comprometimento atencional, declínio de memória e apatia. A incontinência urinária pode ser antecedida por urgência miccional, nos estágios mais precoces. Em estágios tardios pode haver indiferença à incontinência, refletindo o comprometimento de lobos frontais.

Avaliação Diagnóstica

Testes genéticos podem ser recomendados em formas congênitas de hidrocefalia. Nestes casos, a análise do LCR deve ser feita para ajudar no diagnóstico e para excluir infecção ou hemorragia. A radiografia simples do crânio pode mostrar erosão da sela túrcica, ou a chamada aparência de “crânio de cobre batido”, mas hoje em dia usa-se pouco este método pois há métodos diagnósticos mais precisos. A ultrassonografia por meio da fontanela anterior pode ser usada em lactentes para avaliar o sistema ventricular e a progressão da hidrocefalia. 

A neuroimagem desempenha um papel central na confirmação do diagnóstico em casos suspeitos, identificando a causa e o possível tratamento. A ressonância magnética (RM) é o exame de escolha, pois mostra melhor que a tomografia as estruturas da fossa posterior, identifica tumores cerebrais e diferencia a HPN da atrofia cerebral. O exsudato transependimal, indicativo de aumento da pressão liquórica, pode ser visualizado como uma hiperintensidade periventricular nas sequências T2 e FLAIR.  

A RM na HPN pé caracterizada por um aumento desproporcional da dilatação dos ventrículos. Este aumento desproporcional é caracterizado por 4 elementos: ventriculomegalia, espaços subaracnoides estreitos, aumento desproporcional das fissuras Sylvianas, sucos focalmente dilatados sem atrofia cortical adjacente. Apesar de úteis, os achados radiológicos são inespecíficos e há uma ampla lista de diagnósticos diferenciais da HPN:

 

Distúrbios neurodegenerativos: doença de Alzheimer, doença de Parkinson, doença corpos de Lewy, doença de Huntington, demência frontotemporal, degeneração corticobasal, paralisia supranuclear progressiva, esclerose lateral amiotrófica, atrofia de múltiplos sistemas, encefalopatia espongiforme. 
Demência vascular: demência multi-infarto, doença de Binswanger, arteriopatia cerebral autossômica dominante com infartos subcorticais e leucoencefalopatia (CADASIL), Insuficiência vertebrobasilar. 
Outras hidrocefalias: estenose aquedutal, hidrocefalia obstrutiva   
Doenças infecciosas: doença de Lyme, HIV, sífilis.  
Distúrbios urológicos: infecção do trato urinário, câncer de bexiga ou próstata. 
Diversos: deficiência de B12, epilepsia, depressão, traumatismo crânio encefálico, estenose espinhal, malformação de Chiari, encefalopatia de Wernicke, meningite carcinomatosa, tumor de coluna, artrose de joelhos. 

 

Considerando-se os diagnósticos diferenciais e a ausência de especificidade dos exames radiológicos, é fundamental conformar a HPN através do TAP TEST. O TAP TEST contribui não apenas para o diagnóstico, mas tambpem para a indicação de tratamento através de realização de derivação ventrículo-peritoneal (DVP).  

 

O TAP TEST é realizado em dois dias e inclui os seguintes procedimentos:  

 

Dia 1 

(1º) Avaliação Neuropsicológica 

Realizada um dia antes da punção, com o propósito de evitar o efeito de aprendizagem, incluindo avaliação de memória, atenção e velocidade de processamento.  

  

Dia 2 

(1º) Avaliação da Marcha 

A avaliação da marcha ocorre em um espaço plano, iluminado e sem distratores, com 10 metros comprimento. O paciente é filmado com equipamento que registra até 1200 quadros por segundo. As performances pré e pós-punção são comparadas por software que analisa parâmetros espaço-temporais da marcha, com margens de erro espacial e temporal menores que 1 centímetro e 0,01 segundos, respectivamente.  

(2º) Punção Liquórica (até 40 ml) 

(3º) Janela de 2 horas 

(4º) Reavaliação neuropsicológica e da marcha 

 

A melhora documentada em uma ou mais dessas medidas, após o procedimento, sugere que o paciente terá um bom resultado após a colocação de um shunt ventriculoperitoneal (DVP). Estudos indicam que o TAP TEST tem um valor preditivo positivo excelente (90 a 100 por cento).

Tratamento

A derivação ventriculoperitoneal (DVP) é o tratamento mais utilizado. Um procedimento alternativo para alguns casos, especialmente quando há estenose aquedutal, é a ventriculostomia endoscópica, em que se abre o assoalho do terceiro ventrículo, permitindo que o LCR seja drenado para a cisterna basal pré-pontina. A coagulação do plexo coróide pode ser usada para casos de hiperprodução de LCR. As punções lombares repetidas podem ser feitas em casos de hidrocefalia comunicante.

O Laboratório de LCR e a Hidrocefalia

O TAP TEST e o exame de LCR são, portanto, exames fundamentais na avaliação diagnóstica e terapêutica de diversas formas de hidrocefalia. O Senne Liquor Diagnóstico realiza todos os exames para o diagnóstico de causas infecciosas e tumorais de hidrocefalia, e tem ampla experiência e estrutura para realização do TAP TEST, com mais de 600 exames realizados pela equipe coordenada pelo Prof Dr Sandro Matas.

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