O exame do líquido cefalorraquidiano na Neuroesquistossomose

A Esquistossomose, também conhecida como bilharzíase, é uma infecção helmíntica causada por parasitas do gênero Schistosoma;  as espécies japonicum, mansoni e haematobium são as que mais frequentemente causam manifestações clínicas. Em todo o mundo, são mais de 200 milhões de pessoas infectadas. O baixo status socioeconômico e a higiene precária favorecem a disseminação da doença, porém, a prevalência global de manifestações neurológicas da Esquistossomose, encefálicas e medulares, é desconhecida.  

A transmissão da infecção se dá pelo contato com água contendo caramujos infectados. Os seres humanos, particularmente crianças e adolescentes, são infectados após as cercárias móveis penetrarem na pele. Indivíduos infectados transmitem a doença por excreção de ovos esquistossômicos nas fezes (S. mansoni, S. japonicum). 

A Esquistossomose do sistema nervoso ocorre por deposição ectópica de ovos, que chegam ao cérebro e medula espinhal via fluxo retrógrado das veias ilíacas ou da veia cava inferior. A esquistossomose cerebral é mais comum com S. japonicum, pois essa espécie libera pequenos ovos que conseguem chegar ao cérebro. Os ovos de S. mansoni são maiores e mais frequentemente produzem lesões na medula espinhal.  

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A gravidade dos sintomas da doença no  Sistema Nervoso Central (SNC) depende da localização dos granulomas e da gravidade da resposta imune do hospedeiro. A Encefalopatia Esquistossomótica Aguda é tipicamente causada por S. japonicum. Complicações clínicas cerebrais de Neuroesquistossomose Aguda Cerebral incluem delírio, perda de consciência, cefaleia, convulsões, deficiência do campo visual e déficits motores e sensoriais. Podem ocorrer lesões tumefativas por S. japonicum, mais comumente no cerebelo.

Complicações cerebrovasculares podem também acontecer, com Vasculite Cerebral durante o estágio inicial pós-infeccioso. Comprometimento cognitivo foi relatado em crianças com Neuroesquistossomose, mais comumente entre aqueles cronicamente infectados. 

A Esquistossomose cerebral assintomática pode ocorrer em pessoas previamente expostas à Esquistossomose. Estudos neuropatológicos detectaram ovos de esquistossomo em quase 25% dos cérebros de pessoas com Esquistossomose Hepatoesplênica. A Neuroesquistossomose Cerebral é raramente vista em nosso meio, visto que S. japonicum é mais comumente encontrado na China, nas Filipinas e no sudoeste asiático.

A Mielorradiculite Esquistossomótica é a forma neurológica mais comum de Esquistossomose no nosso meio e é habitualmente causada por S. mansoni, que é encontrado em partes da América do Sul, África, do sudoeste asiático, Caribe e Oriente Médio. Apresenta-se de forma aguda ou subaguda como uma síndrome da medula espinhal, frequentemente associada com envolvimento da cauda equina. 

A Mielorradiculopatia Esquistossomótica geralmente ocorre logo após a infecção primária e é mais provável que seja mais sintomática do que a Esquistossomose Cerebral. A reação inflamatória em torno do ovo leva à formação de um granuloma, congestão e edema localizados nas raízes espinhais. Os ovos podem ser transportados de forma retrógrada no plexo venoso vertebral de Batson, sem válvulas, que conecta o sistema venoso portal e a veia inferior cava com as veias espinhais. 

Tal mecanismo de migração explica a topografia da inflamação na região lombossacra. Clinicamente, a Mielorradiculite Esquistossomótica caracteriza-se por fraqueza rapidamente progressiva e deficiência sensorial associada à disfunção vesical. Paraplegia junto com flacidez muscular e abolição de reflexos, retenção e perda urinária, diminuição de sensibilidade superficial e profunda ocorrem em função do acometimento do cone espinhal e da cauda equina. Espasticidade pode ocorrer quando porções superiores da medula espinhal são afetadas.

Diagnóstico

A Esquistossomose Cerebral ou Espinhal deve ser suspeitada em pessoas que apresentam Encefalopatia Aguda ou Mielopatia, que vivem ou viveram em áreas endêmicas ou em viajantes expostos à água doce em áreas endêmicas. Em aproximadamente 40% dos pacientes com quadro agudo de Neuroesquistossomose, ovos característicos podem ser identificados nas fezes.

O diagnóstico definitivo pode ser feito por meio da demonstração histopatológica de ovos de esquistossomo, colhidos pela  biópsia retal. A ressonância magnética é o método de imagem de escolha. As principais alterações reveladas pela ressonância magnética são: alargamento da medula espinhal em imagens ponderadas em T1 e hiperintensidade de sinal em imagens ponderadas em T2 na região afetada, indicando aumento do teor de água (edema). Em T1, há o realce granular difuso heterogêneo de sequências ponderadas (impregnação) após a injeção de gadolínio na maioria dos casos. Embora a ressonância magnética seja um método muito sensível para a avaliação de Mielorradiculite Esquistossomótica, as alterações diagnósticas não são específicas dessa doença. 

A análise do líquido cefalorraquidiano de pacientes com Mielorradiculite Esquistossomótica mostra níveis normais de glicose juntamente com outras alterações não específicas, incluindo um aumento leve a moderado no conteúdo de proteína em 95% dos casos, pleocitose com uma preponderância de linfócitos (91,9 ± 113,8 células/mm3) em 91% dos casos, e presença de eosinófilos em 41-90%. Um estudo mostrou um aumento dos níveis de gamaglobulina em 76%. 

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A pleocitose do líquido cefalorraquidiano diminui conforme o quadro clínico melhora, mas os níveis aumentados de proteína podem permanecer altos em 66% dos casos. Métodos de detecção de anticorpos anti-Schistosoma, como a imunoabsorção enzimática (ELISA), a imunofluorescência indireta (IIF) e testes de hemaglutinação, podem ser identificados no líquido cefalorraquidiano  de 80-90% dos pacientes com Mielorradiculite Esquistossomótica. 

A técnica de PCR nested tem se mostrado promissora para identificação do DNA do S. mansoni no líquido cefalorraquidiano em pacientes com Mielorradiculite Esquistossomótica. A sorologia positiva é considerada uma demonstração de infecção por Schistosoma. As alterações liquóricas estão sumarizadas na Tabela 1.

Tratamento

Drogas esquistossomicidas (praziquantel, oxamniquina e derivados de artemisinina) e esteroides são usados para tratar esquistossomose cerebral e espinhal. O praziquantel é a medicação mais comumente prescrita e é eficaz contra vermes  adultos. Pacientes com Esquistossomose Cerebral ou Espinhal devem ser tratados com corticosteroides antes do tratamento anti-helmíntico, embora não exista consenso sobre a dose ou duração do tratamento com esteroides.

Tabela 1. Alterações liquóricas na mielorradiculite esquistossomótica

Exames no líquido cefalorraquidiano

Exames no líquido cefalorraquidiano Achados 
Citologia e bioquímica  Níveis normais de glicose. Aumento leve a moderado no conteúdo de proteína. Pleocitose com uma preponderância de linfócitos, com presença de eosinófilos em 41-90%.
Avaliação da barreira hematoencefálica e da imunoprodução intratecal  Índice de IgG, Nomograma de Reiber, Pesquisa de bandas oligoclonais: podem auxiliar a identificar um processo inflamatório sistêmico (com bandas em espelho no soro e no líquido cefalorraquidiano) ou uma resposta inflamatória compartimentalizada no SNC (índice de IgG aumentado e bandas apenas no líquido cefalorraquidiano, e não no soro).
Imunologia específica  ELISA, Imunofluorescência indireta (IIF) ou testes de hemaglutinação – identificados no líquido cefalorraquidiano de 80-90% dos pacientes com Mielorradiculite Esquistossomótica.
Biologia molecular  PCR para S. mansoni.  
Exclusão de outras causas infecciosas  Microbiologia convencional para bactérias 

Pesquisa e Cultura para Fungos e M. tuberculosis 

PCR para enterovírus, família herpes e/ou painéis: FilmArray – painel molecular para 14 diferentes agentes de Meningites e Encefalites, BDMAx vírus  

PCR para fungos, Lyme, M. tuberculosis

Bibliografia Consultada

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