O líquido cefalorraquidiano (liquor) nas doenças reumatológicas.

No artigo de hoje, vamos discorrer sobre a importância do LCR nas Doenças Reumatológicas.

As doenças reumatológicas frequentemente tem envolvimento sistêmico, podendo resultar em dano ao sistema nervoso central (SNC) e periférico (SNP). As manifestações do SNC são inúmeras e decorrem de inflamação do SNC (por exemplo, meningoencefalite, cerebrite, mielite), vasculite, vasculopatia (por exemplo, acidente vascular cerebral síndromes, trombose do seio venoso, dissecção arterial), ou doença estrutural (por exemplo, subluxação atlantoaxial), ou pode apresentar-se com manifestações secundárias (por exemplo, cefaleia, distúrbios do movimento, convulsões, estado confusional agudo, ansiedade, disfunção cognitiva, transtorno de humor, psicose). As manifestações do SNP também são frequentes e abrangem o comprometimento da raiz nervosa e nervos periféricos por lesão compressiva (por exemplo, lesão da coluna e compressão do mediano), processos inflamatórios (por exemplo, miopatia, neurites) e vasculite do SNP.

Lupus Eritematoso Sistêmico (LES)

As manifestações neurológicas associadas ao LES incluem:  

 

Manifestações do SNC:  

  • Meningite asséptica 
  • Doença cerebrovascular 
  • Síndrome desmielinizante 
  • Cefaleia (agravamento da enxaqueca ou cefaleia pelo LES) 
  • Distúrbio de movimento 
  • Mielopatia 
  • Crises epilépticas 
  • Estado confusional agudo 
  • Transtornos neuropsiquiátricos (transtorno de ansiedade, disfunção cognitiva, transtorno de humor, psicose)  

 

Manifestações do SNP:  

  • Polineuropatia inflamatória aguda ou crônica desmielinizante (AIDP, CIDP) 
  • Neuropatia autonômica 
  • Mononeuropatia, único ou múltiplo 
  • Miastenia grave 
  • Neuropatia craniana 
  • Plexopatia 
  • Polineuropatia 

 

Cefaleia, doença cerebrovascular, convulsão e disfunção cognitiva são as manifestações mais comuns. Em cerca de 40% dos casos com manifestações no SNC a RM é normal. Alterações inespecíficas, como lesões com hipersinal em T2/FLAIR, podem ser também encontradas. O comprometimento do SNP é diagnosticado pela eletroneuromiografia. Exames laboratoriais, como a CPK, TGO e aldolase podem indicar comprometimento muscular. As possíveis alterações liquóricas no LES são mostradas na Tabela 1.

Artrite reumatoide (AR)

Na AR as manifestações do SNC são bem menos comuns do que as do SNP. Transtornos psiquiátricos e cognitivos têm sido reconhecidos com frequência crescente. Depressão e ansiedade ocorrem em taxas mais altas do que na população em geral. Também pode haver comprometimento cognitivo, estando associado a múltiplos fatores relacionados à doença ou ao tratamento. 

A cefaleia também é comum, mas, considerando ser um sintoma altamente prevalente, não é necessariamente relacionada à AR. Meningite e Meningoencefalite pela AR são raras e podem ser identificadas pela RM e pelo exame do líquido cefalorraquidiano (liquor). Uma complicação potencial é o desenvolvimento de hidrocefalia de pressão normal, que pode também decorrer de outras doenças reumatológicas.  

O comprometimento da coluna cervical pode determinar déficits neurológicos. Lesões inflamatórias ou erosões ósseas são capazes de causar compressão da medula ou de raízes nervosas.   

Neuropatias periféricas são comuns: as mononeuropatias compressivas são a forma mais corriqueira. Polineuropatia Sensorial Distal Simétrica ou Sensoriomotora e Mononeurite Multiplex também ocorrem em função da AR. Investigação com eletroneuromiografia, biópsia de nervo periférico e exame do líquido cefalorraquidiano auxiliam na definição do quadro, estabelecendo se a neuropatia decorre diretamente da AR ou se resulta de outro fator. 

As alterações liquóricas decorrentes de complicações neurológicas da AR são mostradas na Tabela 1.

Síndrome de Sjögren

A Polineuropatia é a manifestação neurológica mais frequentemente encontrada nesta doença. O tipo mais usual é a Polineuropatia Axonal Simétrica Distal, que pode ser sensorial ou sensoriomotora. Apenas uma minoria dos pacientes apresenta neuropatia assimétrica.

Neuropatia de fibras finas também é frequente, mas nesses casos pode ser necessária uma investigação específica com biópsia de pele a partir de técnicas específicas de análise do material. 

Outra manifestação de SNP é a disfunção autonômica, que pode incluir anormalidades da reação pupilar (pupila de Adie), intolerância ortostática, mudanças no volume ou distribuição do suor, dismotilidade gastrointestinal e anormalidades na resposta da frequência cardíaca a estímulos. A Neuronopatia Sensorial (Ganglionopatia) é um distúrbio raro possivelmente associado a essa doença, que cursa com anormalidades sensoriais, dor e ataxia.  

O envolvimento do SNC é muito menos comum. Encefalopatia e disfunção cognitiva, em geral de modo sutil, podem ocorrer. Manifestações neuropsiquiátricas foram relatadas. Meningite Asséptica, por vezes recorrente, pode também se manifestar. A RM do cérebro pode mostrar alterações inespecíficas da substância branca.

A Mielopatia pode se apresentar com lesões desmielinizantes longitudinalmente extensas, semelhantes à encontrada na Neuromielite Óptica (NMOSD). Há casos de associação com positividade do anticorpo aquaporina-4 (Sjögren primário mais NMOSD secundária).  

A investigação inclui exames de neuroimagem, eletroneuromiografia, biópsia de nervo periférico e exame do líquido cefalorraquidiano (liquor), cujas alterações mais comuns são mostradas na Tabela 1.

Esclerose sistêmica/Esclerodermia

O comprometimento do SNC é incomum nessa doença. Epilepsia, Depressão e cefaleia têm sido relatados, contudo a associação com a doença de base é incerta. Já o envolvimento do SNP é mais comum, com alta incidência de envolvimento muscular, detectado pela clínica ou por exames eletrofisiológicos, radiológicos ou patologia (até 90% dos casos). Os sintomas incluem fraqueza e mialgia. A biópsia muscular pode revelar Fibrose, inflamação ou vasculopatia.Vasculites

As Vasculites incluem uma variedade de distúrbios caracterizados por processos inflamatórios das paredes dos vasos sanguíneos, podendo levar à isquemia do órgão final e dano inflamatório. Podem ser idiopáticos ou associados com deposição de imunocomplexos em pacientes com infecção crônica (por exemplo, hepatite ou vírus da imunodeficiência humana [HIV]) ou doenças do tecido conjuntivo).  

É uma doença rara, que afeta pequenas artérias e veias nas meninges e no córtex cerebral. Os sintomas mais comuns são cefaleia, declínio cognitivo/Encefalopatia, isquemia ou hemorragia cerebral, crises epilépticas, Meningite ou Mielopatia. 

O diagnóstico é feito após exclusão de Vasculite Secundária do SNC. Normalmente, são realizados exames de neuroimagem, preferencialmente a RM, com estudo de vasos. Estes incluem estenoses de pequenas artérias cerebrais em múltiplos pontos, que podem ser alternados com segmentos angiográficos com dilatações. 

Entre as outras anormalidades estão o esvaziamento arterial retardado e microaneurismas, mas nenhum dos achados angiográficos é específico. Vasoespasmo, infecções do SNC, Embolia Séptica e Aterosclerose podem confundir-se radiologicamente com a Vasculite Primária de SNC.

 O exame do líquido cefalorraquidiano é anormal em 80 a 90% dos pacientes. As alterações mais frequentes são mostradas na Tabela 1.  

  • Vasculite primária do SNP

 A Mononeurite Multiplex é a manifestação mais comum, seguida por polineuropatia assimétrica distal, polineuropatia simétrica distal e neuropatia sensorial pura. Neuropatia craniana, lombossacra, plexopatia e radiculopatia são características raras. 

O curso pode ser recorrente-remitente, monofásico ou rapidamente progressivo. Tal como acontece com a Vasculite Primária do SNC, a biópsia não é particularmente sensível, com acurácia de cerca de 50%. 

  •  Vasculites Sistêmicas

 Algumas Vasculites Sistêmicas podem cursar com comprometimento neurológico. A Granulomatose Eosinofílica com Poliangeíte é caracterizada por alergia, Rinite com pólipos nasais e Sinusite, seguida de Asma com hipereosinofilia e Vasculite Sistêmica. 

Os anticorpos p-ANCA/MPO são frequentemente encontrados, particularmente quando há glomerulonefrite. As manifestações de SNP são mais comuns e incluem Mononeurite Múltipla e Polineuropatia Sensoriomotora Assimétrica.

Neuropatia Craniana e Miosite são raras. AVCI, AVCH ou lesões vasculares de medula também. A Vasculite Crioglobulinêmica resulta da deposição de complexos imunes dependentes do frio, em pequenas paredes de vasos.  

A Doença de Behçet é uma Vasculite recorrente, que afeta vários tamanhos de vasos. Os achados incluem úlceras orais e genitais, Uveíte, lesões de pele, Artrite, envolvimento gastrointestinal, Vasculopatia de Grandes Vasos e manifestações neurológicas (Doença de Neuro-Behçet). 

A Doença de Neuro-Behçet deve ser considerada em qualquer lesão inflamatória focal ou multifocal do SNC. Cefaleia e síndromes motoras, sensitivas, cognitivas e comportamentais podem decorrer dessas lesões. As localizações mais comuns são o tronco cerebral e os gânglios da base, mas os hemisférios e a medula espinhal podem estar envolvidos. 

Pode ocorrer também a hipertensão intracraniana devido à Trombose Venosa Cerebral. O envolvimento do SNP é raro e, quando presente, ocorre na forma de Polineuropatia Periférica, Mononeurite Múltipla ou Miopatia.

  • Síndrome do Anticorpo Antifosfolipídio

Anticorpos antifosfolipídios são comuns em pacientes com LES, mas também podem ser encontrados em uma série de distúrbios, incluindo outras doenças do tecido conectivo, Vasculites, HIV ou outras infecções virais, Doença de Lyme ou Sífilis. 

Além disso, podem ser vistos isoladamente, podendo ocasionar resultados falso-positivos de VDRL. As manifestações neurológicas incluem Cefaleia, disfunção cognitiva, crises epilépticas, Depressão, Mielite e Coreia ou outros transtornos do movimento.

  • Doença relacionada ao IgG4

Trata-se de uma condição recentemente caracterizada por Fibrose e Esclerose, com níveis elevados de IgG4 no soro. Há relatos de manifestações neurológicas, mais comumente Paquimeningite, mas também envolvimento dos tecidos orbitais (pseudotumor orbital), seio cavernoso, nervos cranianos, glândula pituitária, raízes e nervos.

  • Neurossarcoidose

A Neurossarcoidose geralmente ocorre em casos de Sarcoidose com envolvimento sistêmico substancial. Sinais de envolvimento neurológico geralmente são observados em pacientes com a doença ativa. Formas estritamente neurológicas são observadas em menos de 10% dos pacientes. As complicações neurológicas incluem:  

  • Polineuropatia sensoriomotora difusa; 
  • Neuropatias multifocais e Mononeurite Múltipla; 
  • Mononeuropatia; 
  • Polineuropatia Motora Desmielinizante Generalizada Aguda, semelhante à Síndrome de Guillain-Barré; 
  • Meningite Crônica, Meningoencefalite; 
  • Alterações cognitivas; 
  • Lesões parenquimatosas focais; 
  • Hidrocefalia; 
  • Paquimeningite; 
  • Alterações hipofisárias. 

 Você pode se interessar: Biomarcadores liquóricos de atividade da esclerose múltipla.

O diagnóstico envolve uma investigação ampla e individualizada, com exames radiológicos, cintilografia com gálio, pesquisa da atividade da enzima conversora de angiotensinogênio, eletrodiagnóstico, biópsia de lesões granulomatosas e nervos periféricos. 

As alterações liquóricas são mencionadas na Tabela 1.Complicações do tratamento

Complicações neurotóxicas associadas aos medicamentos usados no tratamento dessas doenças, em SNC e SNP, podem ocorrer. Além disso, complicações infecciosas diversas podem ser consequência de imunossupressão associada a certos agentes medicamentosos, como imunossupressores e anticorpos monoclonais, usados no tratamento dessas doenças.

Meningites e Meningoencefalites oportunistas podem acontecer nesse contexto, com incidência variável, dependendo do medicamento usado e das condições clínicas do paciente.

Veja a lista completa de exames do Senne Liquor. 

Bibliografia consultada

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Lapides DA, McDonald MM. Inflammatory Manifestations of Systemic Diseases in the Central Nervous System. Curr Treat Options Neurol. 2020;22(9):26. doi: 10.1007/s11940-020-00636-2.  

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Carrión-Barberà I, Salman-Monte TC, Vílchez-Oya F, Monfort J. Neuropsychiatric involvement in systemic lupus erythematosus: A review. Autoimmun Rev. 2021 Apr;20(4):102780. doi: 10.1016/j.autrev.2021.102780. 

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