Os distúrbios do sono constituem um grupo de condições clínicas relativamente comuns na população geral, e são considerados um problema de saúde pública. Esses quadros podem aumentar a propensão do surgimento ou agravamento de distúrbios psiquiátricos, déficits cognitivos, doenças cardiovasculares e outras patologias, além de prejudicar a qualidade de vida dos pacientes.
Existem muitos tipos diferentes de distúrbios do sono. Segundo a Terceira Classificação Internacional de Distúrbios do Sono (ICSD), são consideradas as seguintes categorias:
- Insônia;
- Transtornos do sono relacionados à respiração;
- Hipersonolência de origem central;
- Parassonias;
- Transtornos do ritmo circadiano;
- Transtorno do sono relacionado ao movimento;
- Outros transtornos do sono.
No Brasil, cerca de 65% da população relata problemas relacionados ao sono. Os métodos diagnósticos utilizados vão desde a avaliação subjetiva, por meio da aplicação de questionários específicos, até os registros actigráficos. Essa técnica de análise do ciclo sono-vigília permite registrar a atividade motora por meio dos movimentos dos membros durante 24 horas. Entre as outras possibilidades estão a polissonografia diurna ou noturna, com registros:
- Em polígrafo do eletroencefalograma (EEG);
- Do eletro-oculograma (EOG)
- Da eletromiografia (EMG);
- Do mento e membros;
- Das medidas do fluxo oronasal;
- Do movimento tóraco-abdominal;
- Do eletrocardiograma (ECG);
- Da oximetria de pulso.
O exame do líquido cefalorraquidiano (liquor) tem ganhado relevância na avaliação de pacientes com transtornos do sono. A sua importância foi evidenciada especialmente após a descoberta do sistema hipocretina/orexina e sua ligação com a narcolepsia, como revela um estudo publicado em 2005.
Narcolepsia
A narcolepsia é uma síndrome clínica de sonolência diurna com cataplexia, alucinações hipnagógicas e paralisia do sono. É uma das causas mais comuns de sonolência diurna incapacitante, perdendo em incidência apenas para a apneia obstrutiva do sono.
Essa condição está associada à deficiência do neuropeptídeo hipocretina-1 no liquor, em decorrência da destruição de neurônios do hipotálamo lateral. Pode ser classificada em 2 tipos:
- Tipo 1 (NT1): originada da deficiência de hipocretina e acompanhada de cataplexia (paralisia ou fraqueza muscular momentânea provocada por reações emocionais súbitas);
- Tipo 2 (NT2): com níveis normais de hipocretina e sem cataplexia.
Estima-se que a narcolepsia tipo 1 tenha uma prevalência de 25 a 50 casos a cada 100.000 pessoas. Mais comumente, o distúrbio se inicia na adolescência ou a partir dos 20 anos de idade, mas pode ocorrer aos 5 ou após os 40 anos. Já a prevalência da NT2 é incerta, uma vez que ainda é pouco estudada e possui um diagnóstico complexo.
Os principais sintomas da narcolepsia são:
- Sono diurno excessivo (SDE);
- Cataplexia;
- Alucinações hipnagógicas e hipnopômpicas;
- Paralisia do sono;
- Sono noturno perturbado (em detrimento ao aumento de despertares).
A análise do líquido cefalorraquidiano auxilia na identificação de NT1, pois permite a quantificação dos níveis de orexina-A/hipocretina-1, destacando a redução patológica desse neurotransmissor. Já na NT2, os níveis de orexina no liquor se apresentam na faixa normal.
Pesquisas têm identificado possíveis novos marcadores na narcolepsia
Um estudo de análise metabolômica de amostras de liquor identificou uma quantidade de histidina significativamente aumentada em pacientes com NT1. Por sua vez, os níveis de histamina, que é sintetizada a partir da histidina, foram diminuídos nesse grupo.
Outra pesquisa avaliou a concentração de lactato no líquido cefalorraquidiano, que se mostrou reduzida em pacientes com NT1 e NT2, em comparação aos controles. Assim, sugere-se que o lactato no liquor ≤1,3 mmol/l tem boa sensibilidade e especificidade para discriminar indivíduos com narcolepsia de controles.
O estudo de proteômica em liquor mostrou proteínas da via alternativa da lectina e do complemento, bem como o complexo de ataque à membrana lítica à jusante, aumentadas na NT1. Os achados revelam que a desregulação do complemento em pacientes com NT1 pode contribuir para a imunopatologia, seja por promover diretamente o dano tecidual, seja como parte de respostas inflamatórias locais.
Insônia
A insônia é um dos sintomas mais comuns pelos quais os adultos procuram orientação médica. O seu manejo requer uma abordagem gradual, que começa com tentativas de eliminar, ou pelo menos minimizar, os múltiplos fatores contribuintes e as comorbidades que podem interferir no sono.
O diagnóstico de insônia é baseado em características clínicas fornecidas por histórico médico completo, avaliação de parâmetros subjetivos do sono, exame físico abrangente e aplicação da classificação atual. O exame do liquor não faz parte da sua avaliação de rotina.
Contudo, pesquisas recentes têm mostrado que a insônia pode determinar alterações em marcadores liquóricos, com potencial utilidade, como aqueles prognósticos de doenças neurológicas.
A privação do sono mostrou interferir na β-amiloide (Aβ), uma proteína relacionada à Doença de Alzheimer. Esse achado pode ajudar a compreender a relação entre sono insatisfatório e o risco de desenvolver a patologia.
A detecção de alfa (α)-sinucleína no líquido cefalorraquidiano em pacientes com Doença de Parkinson produziu resultados promissores. A sua concentração média é significativamente menor em pacientes com a condição, em comparação com controles.
Foi avaliada a associação da privação do sono com a α-sinucleína (α-syn) do liquor, mostrando uma diminuição de sua concentração em pacientes com distúrbios do sono. Essa descoberta pode uma associação entre a eficiência do sono e a prevenção da Doença de Parkinson.
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Distúrbio comportamental do sono REM
O distúrbio comportamental do sono REM (RBD) é uma condição caracterizada por comportamentos de representação de sonhos que surgem durante a perda da atonia do sono REM. A encenação do sonho RBD varia em gravidade, desde gestos benignos com as mãos até surras violentas, socos e chutes. No geral, os pacientes procuram atendimento médico por uma preocupação relacionada a ações prejudiciais ou potencialmente danosas a si e/ou a terceiros.
Um diagnóstico de distúrbio comportamental do sono (RBD) de movimento rápido dos olhos (REM) deve ser cogitado em pacientes com história clínica de comportamento recorrente de representação de sonhos. Também é preciso que seja confirmado com vídeo-polissonografia.
O exame de liquor não faz parte da investigação do RBD, contudo, alguns estudos mostram alterações em biomarcadores liquóricos. A grande maioria dos pacientes com a condição acabará por demonstrar sinais e sintomas da Doença de Parkinson ou de um distúrbio relacionado.
Em função dessa associação, marcadores de doenças neurodegenerativas foram avaliados em pacientes com RBD, incluindo α-syn, proteína amiloide fração Aβ1-42, proteína tau total e tau-fosforilada (t-tau e p-tau) no liquor, sugerindo que a Aβ1-42 pode ser um biomarcador para desenvolvimento da neurodegeneração nesses casos.
Síndrome das Pernas Inquietas (SPI)
Também chamada de Doença de Willis-Ekbom, a SPI é um distúrbio de movimento comum relacionado ao sono, caracterizada por uma necessidade muitas vezes desagradável ou desconfortável de mover as pernas. Ela ocorre durante períodos de inatividade, sobretudo à noite, e é temporariamente aliviada pelo movimento.
Durante o sono, a maioria dos pacientes com SPI apresenta movimentos característicos dos membros, chamados movimentos periódicos dos membros do sono (MPMS), que podem ou não estar associados aos despertares noturnos.
Uma hipótese para explicar a SPI é de que a deficiência de ferro no sistema nervoso central (SNC) causa os sintomas como resultado da disfunção dos sistemas dopaminérgicos. Os estudos confirmam valores de ferro e ferritina mais baixos e valores de transferrina mais elevados em pacientes com SPI, quando comparados com controles.
Um estudo de proteômica identificou 6 potenciais marcadores no liquor, sendo 4 proteínas aumentadas (cistatina C, prostaglandina D2 sintase do tipo lipocalina, proteína de ligação à vitamina D e β-hemoglobina) e 2 proteínas disminuidas (apolipoproteína A1 e glicoproteína ácida α-1).
Apneia obstrutiva do sono (AOS)
A AOS é um distúrbio caracterizado por apneias e hipopneias obstrutivas devido ao colapso repetitivo das vias aéreas superiores durante o sono. Quando não tratada, pode levar a consequências potenciais, incluindo a sonolência diurna excessiva, o comprometimento da função diurna, a disfunção metabólica e o aumento do risco de doenças cardiovasculares e mortalidade.
A apneia obstrutiva do sono intensifica o aumento de depósito da β-amiloide no cérebro e o risco de Doença de Alzheimer. Consequentemente, a redução da Aβ em liquor é um potencial marcador de neurodegeneração em pacientes com AOS.
Conclusão
Os estudos mostram que o liquor fornece informações potencialmente úteis sobre o prognóstico neurológico em vários transtornos do sono. O exame de líquido cefalorraquidiano contribui para o diagnóstico e a classificação da narcolepsia. Novos marcadores poderão ser incluídos na avaliação clínica dos pacientes, contribuindo para o estudo de outras intervenções terapêuticas.
Referências
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- Nabizadeh F, Pirahesh K, Valizadeh P. REM sleep behavior disorder and cerebrospinal fluid alpha-synuclein, amyloid beta, total tau and phosphorylated tau in Parkinson’s disease: a cross-sectional and longitudinal study. J Neurol. 2022;269(9):4836-4845.
- Patton SM, Cho YW, Clardy TW, Allen RP, Earley CJ, Connor JR. Proteomic analysis of the cerebrospinal fluid of patients with restless legs syndrome/Willis-Ekbom disease. Fluids Barriers CNS. 2013;10(1):20.
Senne Liquor Diagnóstico
Registro: 950772-SP / 904371-SP
Diretor Técnico-Médico: Carlos Senne
Médico: CRM-SP 16618
Patologista Clínico: RQE-SP 44360