Metagenômica: mais uma ferramenta no diagnóstico molecular das neuroinfecções

Os testes de detecção de DNA ou RNA de organismos infecciosos (por exemplo, bactérias e vírus) têm impactado enormemente o diagnóstico e o manejo de doenças infecciosas. Isso é particularmente verdadeiro para infecções do sistema nervoso central (SNC), cuja identificação rápida e precisa de um patógeno e o início imediato da terapia antimicrobiana são cruciais. A crescente disponibilidade dos testes moleculares para a detecção de microrganismos no líquido cefalorraquidiano (liquor) redefiniu a abordagem para infecções comuns do SNC, como as meningites e as encefalites.  

Os testes moleculares podem ser classificados em:  

  • Testes direcionados 

Têm como alvo uma única região específica do genoma de um microrganismo específico. Os métodos direcionados são geralmente mais sensíveis do que os métodos convencionais de detecção de antígeno ou cultura, e podem detectar organismos que não são cultiváveis. 

Em algumas infecções, como a encefalite pelo vírus herpes simplex (HSV) e a leucoencefalopatia multifocal progressiva (LEMP) pelo vírus JC, a sensibilidade clínica é bem conhecida, e foi comparada com o padrão de referência (por exemplo, biópsia cerebral). 

Veja também: Estudo de caso: Diagnóstico de Meningites Bacterianas com o uso do FilmArray®.

  • Testes multiplex 

Os testes de amplificação de ácido nucleico multiplex ou baseados em painéis combinam várias detecções individuais em um único teste, permitindo que os médicos testem ao mesmo tempo uma série de patógenos potenciais que podem causar uma síndrome clínica. Alguns exemplos são painéis virais, bacterianos etc. 

Em 2015, o primeiro teste multiplex comercial para causas infecciosas de Meningite e Encefalite comunitárias foi liberado pela “Food and Drug Administration (FDA)”, para uso como auxílio no diagnóstico dessas doenças. Esse teste multiplex, o Biofire FilmArray, detecta 14 patógenos bacterianos, virais e fúngicos, em pouco mais de uma hora, incluindo: 

  • Streptococcus pneumoniae;
  • Neisseria meningitidis;
  • Haemophilus influenzae;
  • Streptococcus agalactiae (ou seja, Streptococcus do grupo B);
  • Escherichia coli (sorotipo K1);
  • Listeria monocytogenes;
  • Enterovírus;
  • Vírus herpes simplex (HSV)-1;
  • HSV-2;
  • Vírus varicela-zoster (VZV);
  • Citomegalovírus (CMV);
  • Herpesvírus humano 6 (HHV-6);
  • Parecovírus humano;
  • Cryptococcus neoformans/gattii

Uma meta-análise de oito estudos de precisão diagnóstica, avaliando o BioFire FilmArray, demonstrou alta sensibilidade e especificidade (de 90% (IC de 95% 86-93%) e 97% (IC de 95% 94-99%), respectivamente). 

  • Metagenômica 

A metagenômica ou, mais precisamente, o sequenciamento metagenômico de nova geração (NGS) é uma tecnologia molecular em rápida evolução que tem o potencial de fornecer uma análise direta e imparcial da composição microbiana de amostras clínicas, sem depender de cultura tradicional ou de testes moleculares direcionados. 

O NGS consiste na análise abrangente do material genético microbiano (DNA ou RNA) em amostras de pacientes. Ele usa as técnicas de metagenômica para a identificação e caracterização genômica de bactérias, fungos, parasitas e vírus, sem a necessidade de conhecimento prévio de um patógeno específico nas amostras clínicas.

No NGS, todo o DNA e/ou RNA é sequenciado usando primers (sondas genéticas) universais. As leituras de todos os sequenciamentos gerados pela NGS são montadas em genomas parciais ou completos, gerando identificação de potenciais patógenos presentes na amostra.

A capacidade de detectar todos os patógenos potenciais em uma amostra torna o NGS uma ferramenta potente no diagnóstico de doenças infecciosas, especialmente quando outros ensaios mais direcionados, como a PCR, falham. Ainda há limitações que incluem ausência de validação clínica, pouco conhecimento acerca da sensibilidade, custo e considerações regulatórias. 

Confira: Reação em cadeia da polimerase (PCR) no diagnóstico das neuroinfecções.

Metagenômica: realização 

As etapas na realização da NGS no líquido cefalorraquidiano incluem: 

  • Coleta cuidadosa, pois a contaminação com sangue (acidente de punção) pode interferir no resultado; 
  • Extração de RNA/DNA;  
  • Estratégias de otimização, reduzindo o sinal (ruído de fundo), no sequenciamento metagenômico, oriundo de outros genomas que não dos patógenos, usando DNases e RNases;  
  • Sequenciamento de alto rendimento

Todos os fragmentos de ácidos nucleicos da biblioteca são sequenciados, aumentando as chances de detecção. Para isso, são usadas plataformas específicas;  

  • Análise bioinformática
  •  A análise e a interpretação dos dados que se seguem à amplificação requerem conhecimento especializado em bioinformática e recursos computacionais apropriados. Os dados brutos de uma plataforma de sequenciamento são apurados e filtrados para remover leituras duplicadas e de baixa qualidade. A remoção das leituras do genoma/transcriptoma do hospedeiro é realizada para diminuir o ruído de fundo (por exemplo, leituras do hospedeiro e ambientais) e aumentar a frequência das leituras do patógeno. A identificação taxonômica subsequente é realizada combinando-se os genomas e sequências em bancos de dados de nucleotídeos e proteínas. Alguns softwares foram especificamente desenvolvidos com essa finalidade.  

Metagenômica: utilização clínica    

Alguns estudos têm avaliado a utilidade clínica da NGS no líquido cefalorraquidiano no diagnóstico em neuroinfecção. Em um estudo prospectivo de 204 pacientes com Meningite, Encefalite ou Mielite, que não tinham um diagnóstico no momento da admissão, o agente etiológico foi identificado apenas por testes convencionais em 45% dos pacientes, por NGS isoladamente em 22%, e por ambos os métodos em 33% dos casos. O uso prévio de antibióticos pode ter comprometido os resultados da cultura do líquido cefalorraquidiano, mas não o da NGS.  

Um outro estudo avaliou a precisão do NGS em 95 amostras de pacientes, revelando 73% de sensibilidade e 99% de especificidade, em comparação com os resultados do teste clínico original. Nesse mesmo estudo, foram avaliadas 20 amostras de líquido cefalorraquidiano, coletadas prospectivamente de uma coorte de crianças internadas com Meningite, Encefalite e/ou Mielite, mostrando sensibilidade de 92% e especificidade de 96% em relação ao teste microbiológico convencional na identificação do agente etiológico.  

Um estudo de coorte prospectivo comparou o NGS com os métodos convencionais, incluindo cultura, em 248 pacientes com suspeita de infecção do SNC. O NGS relatou uma sensibilidade de 90% (9/10) em pacientes com cultura positiva sem tratamento empírico e 66,67% (6/9) em pacientes tratados empiricamente. Em comparação com os métodos convencionais, a concordância percentual positiva e concordância percentual negativa foram de 75% e 69%, respectivamente.  Novos estudos têm avaliado também o potencial da NGS na identificação do agente etiológico em casos de Meningite após procedimentos cirúrgicos, com relatos de identificação do agente em casos em que a cultura havia sido negativa. Outro emprego potencial da NGS tem sido na identificação do agente no líquido cefalorraquidiano de pacientes com diagnóstico de Meningite Subaguda ou Crônica. Em um estudo, a NGS permitiu o diagnóstico de um caso de Neurocisticercose e quatro casos de Meningite Fúngica por Cryptococcus neoformans, Aspergillus oryzae, Histoplasma capsulatum e Candida dubliniensis.  

Você também pode se interessar por: O líquido cefalorraquidiano e a AIDS.

Conclusões  

  • Os métodos de detecção de ácido nucleico são mais sensíveis do que os métodos convencionais de detecção de antígeno ou cultura. 
  • A metagenômica é uma tecnologia que apresenta a vantagem de uma busca ampla por agentes infecciosos, sem a necessidade de um direcionamento prévio. 
  • A metagenômica (NGS) tem se mostrado particularmente vantajosa na identificação de Meningites em pacientes submetidos a procedimentos cirúrgicos e pacientes imunossuprimidos com Meningites Subagudas ou Crônicas.   
  • A metagenômica poderá, futuramente, substituir os métodos convencionais de cultura e os métodos moleculares convencionais. Contudo, os estudos já realizados ainda não permitem seu uso clínico rotineiro, sendo necessários estudos prospectivos, avaliando a sensibilidade e especificidade dessa técnica nas diferentes infecções do sistema nervoso.  

O Senne Liquor possui ampla expertise no diagnóstico de neuroinfecções por biologia molecular, realizando testes direcionados, painéis (FilmArray) e agora também a metagenômica.  

Confira a lista completa de exames do Senne Liquor

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